Durante a Quaresma de 2022, no dia 15 de março de 2022, o jornalista
italiano Sandro Magister publicou no seu Blogue Sétimo Céu, um
memorando com fortes críticas ao Pontificado de Francisco. O documento estava assinado por um
pseudónimo: Demos.
No dia 11 de janeiro de 2023, ficamos a saber que o seu autor, segundo Sandro Magister,
é o Cardeal George Pell, que faleceu aos 81 anos, no dia 10 de janeiro de 2023,
no Hospital Internacional Salvator Mundi de Roma, após ter sido submetido a uma
cirurgia no quadril.
No documento, podem-se ler as seguintes críticas:
Os comentaristas de todas as escolas, mesmo que por razões diferentes, com
a possível exceção do padre Spadaro, SJ, concordam que este pontificado é um
desastre sob muitos ou mais aspetos, uma catástrofe.
1) O sucessor de São Pedro é a rocha sobre a qual está edificada a
Igreja, uma grande fonte e causa de unidade mundial. Historicamente, a partir
de Santo Irineu, o papa e a Igreja de Roma têm um papel
único em preservar a tradição apostólica, a regra da fé, em garantir que as
igrejas continuem ensinando aquilo que Cristo e os apóstolos ensinaram.
Anteriormente, o lema era: “Roma locuta. Causa finita est” [Roma falou,
a causa acabou]. Hoje é: “Roma loquitur. Confusio augetur” [Roma fala,
cresce a confusão].
a) O Sínodo alemão fala de homossexualidade, de mulheres
sacerdotes, de comunhão para os divorciados. E o papado se cala.
b) O cardeal Hollerich rejeita o
ensino cristão sobre a sexualidade. E o papado se cala. Isso é duplamente
significativo, porque o cardeal é explicitamente herético; não usa palavras em
código ou alusões. Se o cardeal continuar sem a correção romana, isso
representará outra rutura mais profunda na disciplina, com poucos (ou nenhum?)
precedentes na história. A Congregação para a Doutrina da Fé deve
agir e falar.
c) O silêncio é ainda mais evidente quando se choca com a perseguição
ativa dos tradicionalistas e dos mosteiros contemplativos.
2) A centralidade de Cristo no ensino se enfraquece; Cristo é removido do
centro. Às vezes, Roma parece até confusa sobre a importância de um rigoroso
monoteísmo, aludindo a um certo conceito mais amplo de divindade; não
propriamente panteísmo, mas como uma variante do panteísmo hindu.
a) Pachamama é idólatra,
embora talvez não tenha sido entendida como tal inicialmente.
b) As freiras contemplativas são
perseguidas, e existem tentativas para mudar os ensinamentos dos carismáticos.
c) A herança cristocêntrica de
São João Paulo II na fé e na moral é objeto de ataques sistemáticos.
Muitos professores do instituto romano para a família foram afastados; a
maioria dos estudantes foi embora. A Academia para a Vida está
gravemente prejudicada; por exemplo, alguns de seus membros recentemente
defenderam o suicídio assistido. As pontifícias academias têm membros
e oradores convidados que defendem o aborto.
3)
O não respeito pela lei no Vaticano corre o
risco de se tornar um escândalo internacional. Esses problemas foram
concretizados no processo em andamento no Vaticano contra 10 acusados
de negligência financeira, mas o problema é mais antigo e mais amplo.
a) O papa mudou a lei quatro vezes durante o processo para ajudar
a acusação.
b) O cardeal Becciu não foi tratado com
justiça, porque foi removido do seu cargo e destituído das suas dignidades
cardinalícias sem nenhuma prova. Ele não recebeu o devido processo. Todos têm
direito a um devido processo.
c) Como chefe do Estado vaticano e
fonte de toda autoridade de lei, o papa se serviu desse poder para
interferir nos procedimentos judiciários.
d) O papa às vezes, se não frequentemente, governa com decretos
pontifícios, motu proprio, que eliminam o direito de apelação das pessoas
afetadas.
e) Muitos membros do pessoal, muitas
vezes sacerdotes, foram expulsos às pressas da Cúria vaticana, muitas
vezes sem uma razão válida.
f) As escutas telefônicas são
praticadas regularmente. Não tenho certeza do quão frequentemente isso é
autorizado.
g) No processo inglês contra Torzi, o juiz
criticou duramente os acusadores públicos vaticanos. Estes ou são incompetentes
e/ou foram condicionados, impedidos de fornecer o quadro completo.
h) A irrupção da Gendarmeria vaticana sob
o comando do Dr. Giani, em 2017, no escritório do auditor Libero Milone, em
território italiano, provavelmente foi ilegal e, de todos os modos, foi
intimidatória e violenta. É possível que as provas contra Milone tenham
sido fabricadas.
4)
A situação financeira do Vaticano é grave.
Nos últimos 10 anos (pelo menos) quase sempre houve déficits financeiros. Antes
da Covid, esses défices eram de cerca de 20 milhões de euros ao ano. Nos
últimos três anos, foram cerca de 30-35 milhões de euros ao ano. Os problemas
remontam a antes do Papa Francisco e também do Papa Bento XVI.
a) O Vaticano enfrenta um
pesado déficit dos fundos de pensão. Por volta de 2014, os especialistas
da Cosea [Comissão de Estudos sobre as Atividades Econômicas]
estimavam que em 2030 o déficit seria de cerca de 800 milhões de euros. Isso
antes da Covid.
b) Estima-se que o Vaticano perdeu
217 milhões de euros no prédio da Sloane Avenue, em
Londres. Nos anos 1980, o Vaticano foi obrigado a desembolsar 230 milhões de
dólares após o escândalo do Banco Ambrosiano. Devido à ineficiência e à
corrupção, nos últimos 25-30 anos, o Vaticano perdeu pelo menos
outros 100 milhões de euros e provavelmente vários mais, talvez 150-200
milhões.
c) Apesar da recente decisão do Santo Padre, os processos de
investimento não foram centralizados (como recomendado pela Cosea em
2014 e tentado pela Secretaria da Economia em 2015-2016) e permanecem
desprovidos do conselho de especialistas. Durante décadas, o Vaticano lidou
com financistas de má reputação, evitados por todos os banqueiros que
gozam de estima na Itália.
d) O rendimento das 5.261
propriedades imobiliárias vaticanas continua escandalosamente baixo. Em 2019, a
receita média (antes da Covid) era de quase 4.500 dólares por ano. Em 2020, era
de 2.900 euros por propriedade.
e) O papel mutável do Papa
Francisco nas reformas financeiras (progressos incompletos, mas
substanciais na redução da criminalidade, muito menos bem-sucedidos, exceto
no IOR, em termos de rentabilidade) é um mistério e um enigma.
Inicialmente, o Santo Padre defendeu
fortemente as reformas. Depois, impediu a centralização dos investimentos,
opôs-se às reformas e à maioria das tentativas de desmascarar a corrupção e
defendeu (então) o arcebispo Becciu, no centro do establishment financeiro
vaticano. Depois, em 2020, o papa se voltou contra Becciu, e, no fim, 10
pessoas foram processadas e acusadas. Ao longo dos anos, poucas ações penais
foram iniciadas a partir das indicações de infração da AIF [Autoridade
de Informação Financeira].
Os auditores da Price Waterhouse
& Cooper foram afastados, e o auditor geral Libero Milone foi
forçado a renunciar em 2017, com acusações inventadas. Estavam chegando perto
demais da corrupção na Secretaria de Estado.
5)
A influência política do Papa Francisco e
do Vaticano é insignificante. Intelectualmente, os escritos papais
mostram um declínio em relação aos níveis de São João Paulo II e do
Papa Bento XVI. As decisões e as linhas políticas são muitas vezes
“politicamente corretas”, mas houve graves falhas em defender os direitos
humanos na Venezuela, em Hong Kong, na China continental e
agora na invasão russa.
Não houve nenhum apoio público aos fiéis católicos na China que
foram perseguidos intermitentemente pela sua fidelidade ao papado por mais de
70 anos. Nenhum apoio público vaticano à comunidade católica na
Ucrânia, particularmente aos greco-católicos.
Esses temas deveriam ser revisitados pelo próximo papa. O prestígio
político do Vaticano está agora em um nível baixo.
6)
Em um nível diferente, menor, deveria ser regularizada
a situação dos tradicionalistas tridentinos (católicos).
Em um nível ainda mais modesto,
deveria ser novamente permitida a celebração das missas “individuais”
e com pequenos grupos pela manhã na Basílica de São Pedro. Neste momento,
essa grande basílica, no início da manhã, é como um deserto.
A crise da Covid encobriu a
forte queda no número de peregrinos presentes nas audiências papais e nas
missas.
O Santo Padre tem pouco
apoio entre seminaristas e jovens sacerdotes, e existe uma ampla desfiliação
na Cúria vaticana.
O próximo
conclave
1) O Colégio dos Cardeais foi enfraquecido por nomeações
excêntricas e não foi mais reconvocado após a rejeição das posições do cardeal Kasper no
consistório de 2014. Muitos cardeais são desconhecidos uns dos outros,
acrescentando uma nova dimensão de imprevisibilidade ao próximo conclave.
2) Depois do Vaticano II, as
autoridades católicas muitas vezes subestimaram o poder hostil da secularização,
do mundo, da carne e do diabo, especialmente no mundo ocidental, e
superestimaram a influência e a força da Igreja Católica.
Estamos mais fracos do que há 50
anos, e muitos fatores estão fora do nosso controle, pelo menos em curto prazo,
por exemplo, a queda no número dos fiéis, a frequência das presenças nas
missas, o desaparecimento ou a extinção de muitas ordens religiosas.
3) O papa não precisa ser o melhor evangelizador do mundo, nem
uma força política. O sucessor de Pedro, como chefe do Colégio dos Bispos, que
também são os sucessores dos apóstolos, tem um papel fundamental para a unidade
e a doutrina. O novo papa deve entender que o segredo da vitalidade
cristã e católica vem da fidelidade aos ensinamentos de Cristo e às práticas
católicas. Não vem da adaptação ao mundo ou do dinheiro.
4) As primeiras tarefas do novo
papa serão a retomada da normalidade, a retomada da clareza doutrinal na
fé e na moral, a retomada do justo respeito ao direito e a garantia de que o
primeiro critério para a nomeação dos bispos seja a aceitação da tradição
apostólica. A competência e a cultura teológica são uma vantagem, não um
obstáculo para todos os bispos e sobretudo para os arcebispos.
Esses são
fundamentos necessários para viver e pregar o Evangelho.
5) Se as reuniões sinodais continuarem
em todo o mundo, elas consumirão muito tempo e dinheiro, provavelmente
desviando energias da evangelização e do serviço em vez de aprofundarem essas
atividades essenciais.
Se for dada autoridade doutrinal aos
sínodos nacionais ou continentais, teremos um novo perigo para a unidade da
Igreja mundial, razão pela qual a Igreja alemã, por exemplo, já agora tem
posições doutrinais não compartilhadas por outras Igrejas e incompatíveis com a
tradição apostólica.
Se não houver uma correção romana de
tais heresias, a Igreja se reduzirá a uma vaga federação de Igrejas locais, com
visões diferentes, provavelmente mais próxima de um modelo anglicano ou
protestante, do que de um modelo ortodoxo.
Uma prioridade imediata para o
próximo papa deve ser a de eliminar e evitar um desenvolvimento tão perigoso,
exigindo unidade no essencial e não permitindo diferenças doutrinais
inaceitáveis. A moralidade da atividade homossexual será um desses
pontos críticos.
6) Embora o clero jovem e os seminaristas sejam quase
completamente ortodoxos, às vezes bastante conservadores, o novo papa deverá
estar ciente das mudanças substanciais feitas na liderança da Igreja desde
2013, talvez especialmente na América do Sul e Central. Há um novo salto
no avanço dos protestantes “liberais” na Igreja Católica.
É improvável que um cisma ocorra à
esquerda, onde habitualmente não se fazem dramas sobre as questões doutrinais.
É mais provável que um cisma venha da direita, e isso é sempre possível quando
as tensões litúrgicas são inflamadas e não atenuadas.
Unidade nas coisas essenciais.
Diversidade nas não essenciais. Caridade em tudo.
7) Apesar do seu perigoso declínio no
Ocidente e da intrínseca fragilidade e instabilidade em muitos lugares, se
deveria levar seriamente em consideração a viabilidade de uma visita
apostólica à ordem dos jesuítas. Eles estão em uma situação de catastrófico
declínio numérico, de 36.000 membros durante o Concílio a menos de 16.000 em
2017 (provavelmente com 20-25% deles com mais de 75 anos de idade). Em alguns
lugares, há também um catastrófico declínio moral.
A ordem é altamente centralizada,
suscetível à reforma ou ruína de cima. O carisma e a contribuição dos
jesuítas foram e são tão importantes para a Igreja que não se deveria
permitir que desapareçam imperturbáveis da história ou que simplesmente se
reduzam a uma comunidade afro-asiática.
8) É preciso enfrentar a
desastrosa queda numérica dos católicos e
a expansão dos protestantes na América do Sul. Isso foi muito pouco
mencionado no Sínodo Amazônico.
9) Obviamente, é preciso trabalhar
muito nas reformas financeiras no Vaticano, mas esse não deveria ser o
critério mais importante na escolha do próximo papa.
O Vaticano não tem dívidas
substanciais, mas os contínuos déficits anuais acabarão levando à falência.
Obviamente, serão tomadas medidas para remediar, para separar o Vaticano de
cúmplices criminosos e equilibrar receitas e despesas. O Vaticano deverá
demonstrar competência e integridade para atrair doações substanciais que
ajudem a resolver esse problema.
Apesar da melhoria dos procedimentos
e de uma maior transparência, as contínuas dificuldades financeiras representam
um grande desafio, mas são muito menos importantes do que os perigos
espirituais e doutrinais que a Igreja deve enfrentar, especialmente no Primeiro
Mundo.
Demos
(Quaresma de 2022)