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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Das armas ao convento: a vida de Frei Luís de Sousa



Frei Luís de Sousa

Manuel de Sousa Coutinho, autor da vida do Beato Frei Bartlomeu dos Mártires é uma das estrelas de primeira grandeza, que brilham no firmamento dos grandes mestres da língua portuguesa. A clareza serena, suave e elegante do seu estilo e a fluência natural e espontânea da sua linguagem, fazem do quarto filho de Lopo de Sousa Coutinho, militar valente e um dos muitos que escreveram páginas gloriosas sobre a epopeia portuguesa em terras orientais, e de D. Maria de Noronha, dama da rainha D. Catarina, um dos melhores prosadores lusitanos.

Nascido em 1555, em Santarém, a vida de Manuel de Sousa Coutinho, ou Frei Luís de Sousa, como se chamava em religião, é uma destas existências agitadas e aventurosas, cheias de romanesco, aureoladas de sonhos fantásticos e carregadas de tragédias. Teria encetado, por algum tempo, os estudos universitários em Coimbra; mas, talvez depois da morte inesperada do pai, trespassado pela espada ao desmontar, cedo o vemos seguir a carreira das armas.

Aos 22 anos, navegando numa galé para Malta, onde pretendia alistar-se na Ordem de Malta, foi capturado pelos corsários na Sardenha e conduzido a Argel. No cárcere teve a ventura de conhecer Miguel Cervantes, o famoso autor de Don Quixote de la Mancha, de quem se tornou íntimo. Resgatado em 1577, resolve voltar à Pátria, todavia demora-se em Valência e aí trava amistosas relações com o humanista espanhol Jaime Falcão. Considerando-o como um mestre a quem devia todo o seu saber, nomeadamente o conhecimento da arte poética de Horácio, edita a obra do espanhol, intitulada Ópera Poética.

De volta a Portugal, depois da tremenda derrota de Alcácer Quibir, onde morreu o rei D. Sebastião, que não deixou herdeiro, e quando sobre a nação pairava a nuvem sombria da incerteza e da traição, contraiu matrimónio em 1583 com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, filho de D. Manuel de Portugal, a quem Luís de Camões endereçou a Ode VII como gratificação pelo patrocínio à publicação de Os Lusíadas, morto cinco anos antes em terras africanas.

Nomeado capitão-mor de Almada, ali fixou residência numa esplêndida moradia onde costumava veranear. Entretanto, uma peste começa a flagelar a Capital, e os Governadores do Reino deixam Lisboa e vão-se instalar naquela vila, requisitando a casa de Manuel de Sousa Coutinho. Este, ferido por esta acintosa atitude, lançou-lhe o fogo, exclamando: “Ilumino a minha casa para receber os muito poderosos e excelentes Governadores destes Reinos”.

Desde este ato de intrepidez, a sua misteriosa vida reparte-se ainda por terras de Espanha e da América do Sul, muito provavelmente no Perú. Até que, regressando a Portugal, resolveu, por consentimento mútuo com a esposa, ingressar na religião, professando a 8 de Setembro de 1614, indo ele para o convento de São Domingos de Benfica e ela para o do Sacramento, tomando o nome de Sóror Madalena das Chagas. Esta separação dos dois esposos, talvez motivada pela morte da única e estremecida filha D. Ana de Noronha, despertou um tão forte interesse explicativo que veio a engendrar a obra-prima do teatro garretano – Frei Luís de Sousa, - cuja historicidade é bastante contestada.

Cortados os laços das mundanas vaidades e vivendo com os olhos em Deus na austeridade de um convento dominicano, Manuel de Sousa Coutinho (agora Frei Luís de Sousa) exerceu com desvelo o cargo de enfermeiro, o único que considerava digno da sua baixeza, e procurou trilhar, com humildade, pelas vias da santidade.

Mas o homem põe e Deus dispõe. Em 1616 falecia o cronista da Ordem, Fr. Luís de Cácegas, deixando um grande número de apontamentos e informes desarrumados. Frei Luís de Sousa é encarregado de pôr em “ordem e estilo” todo aquele precioso manancial.

A tarefa era árdua não só para quem já entrava na casa dos sessenta, mas ainda para quem, como ele, desejava sepultar no esquecimento do mosteiro toda influência do mundo. No entanto, obedece. O antigo humanista, agora oculto sob o hábito grosseiro e austero, ia revelar-se o “mais perfeito prosador da língua”, na expressão de Almeida Garret, ou “o principal entre os nossos escritores clássicos” como o considera Alexandre Herculano, que classifica de “maravilhoso o seu estilo”.

Efetivamente, o autor da Vida do Beato Frei Bartolomeu dos Mártires, da vida de S. Domingos e dos Anais de D. João III, é bem o modelo acabado do prosador, onde não cabe mais nada a fazer senão admirar, tanto a elegância da linguagem e simplicidade da forma, como o encanto das descrições e a propriedade de imagens. Em pleno período barroco, numa época em que o gogorismo dominou e manchou os grandes escritores do século, Fr. Luís de Sousa conseguiu ilibar-se desse modo contrafeito de escrever, onde a clareza da ideia é sacrificada à exuberância de elementos ornamentais.

Tinha razão o seu biógrafo D. Francisco Alexandre Lobo, bispo de Viseu, ao traçar o seguinte elogio: “em toda a parte procedeu como a corrente serena, que caminha sempre igual, sem topar em penedos e se despenhar em catadupas”.

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