Frei Luís de Sousa |
Manuel de Sousa Coutinho, autor da vida do Beato Frei
Bartlomeu dos Mártires é uma das estrelas de primeira grandeza, que brilham no
firmamento dos grandes mestres da língua portuguesa. A clareza serena, suave e
elegante do seu estilo e a fluência natural e espontânea da sua linguagem, fazem
do quarto filho de Lopo de Sousa Coutinho, militar valente e um dos muitos que
escreveram páginas gloriosas sobre a epopeia portuguesa em terras orientais, e
de D. Maria de Noronha, dama da rainha D. Catarina, um dos melhores prosadores lusitanos.
Nascido em 1555, em Santarém, a vida de Manuel de Sousa
Coutinho, ou Frei Luís de Sousa, como se chamava em religião, é uma destas
existências agitadas e aventurosas, cheias de romanesco, aureoladas de sonhos
fantásticos e carregadas de tragédias. Teria encetado, por algum tempo, os
estudos universitários em Coimbra; mas, talvez depois da morte inesperada do
pai, trespassado pela espada ao desmontar, cedo o vemos seguir a carreira das
armas.
Aos 22 anos, navegando numa galé para Malta, onde pretendia
alistar-se na Ordem de Malta, foi capturado pelos corsários na Sardenha e conduzido a
Argel. No cárcere teve a ventura de conhecer Miguel Cervantes, o famoso autor
de Don Quixote de la Mancha, de quem se tornou íntimo. Resgatado em 1577, resolve
voltar à Pátria, todavia demora-se em Valência e aí trava amistosas relações
com o humanista espanhol Jaime Falcão. Considerando-o como um mestre a quem
devia todo o seu saber, nomeadamente o conhecimento da arte poética de Horácio,
edita a obra do espanhol, intitulada Ópera Poética.
De volta a Portugal, depois da tremenda derrota de Alcácer
Quibir, onde morreu o rei D. Sebastião, que não deixou herdeiro, e quando sobre
a nação pairava a nuvem sombria da incerteza e da traição, contraiu matrimónio
em 1583 com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, filho de D. Manuel de Portugal, a quem
Luís de Camões
endereçou a Ode VII
como gratificação pelo
patrocínio à publicação
de Os Lusíadas, morto cinco anos
antes em terras africanas.
Nomeado capitão-mor de Almada, ali fixou residência numa
esplêndida moradia onde costumava veranear. Entretanto, uma peste começa a
flagelar a Capital, e os Governadores do Reino deixam Lisboa e vão-se instalar
naquela vila, requisitando a casa de Manuel de Sousa Coutinho. Este, ferido por
esta acintosa atitude, lançou-lhe o fogo, exclamando: “Ilumino a minha casa para receber os muito poderosos e excelentes
Governadores destes Reinos”.
Desde este ato de intrepidez, a sua misteriosa vida
reparte-se ainda por terras de Espanha e da América do Sul, muito provavelmente
no Perú. Até que, regressando a Portugal, resolveu, por consentimento mútuo com
a esposa, ingressar na religião, professando a 8 de Setembro de 1614, indo ele
para o convento de São Domingos de Benfica e ela para o do Sacramento, tomando
o nome de Sóror Madalena das Chagas. Esta separação dos dois esposos, talvez
motivada pela morte da única e estremecida filha D. Ana de Noronha, despertou
um tão forte interesse explicativo que veio a engendrar a obra-prima do teatro
garretano – Frei Luís de Sousa, - cuja historicidade é bastante contestada.
Cortados os laços das mundanas vaidades e vivendo com os
olhos em Deus na austeridade de um convento dominicano, Manuel de Sousa
Coutinho (agora Frei Luís de Sousa) exerceu com desvelo o cargo de enfermeiro,
o único que considerava digno da sua baixeza, e procurou trilhar, com humildade,
pelas vias da santidade.
Mas o homem põe e Deus dispõe. Em 1616 falecia o cronista da
Ordem, Fr. Luís de Cácegas, deixando um grande número de apontamentos e
informes desarrumados. Frei Luís de Sousa é encarregado de pôr em “ordem e
estilo” todo aquele precioso manancial.
A tarefa era árdua não só para quem já entrava na casa dos
sessenta, mas ainda para quem, como ele, desejava sepultar no esquecimento do
mosteiro toda influência do mundo. No entanto, obedece. O antigo humanista, agora
oculto sob o hábito grosseiro e austero, ia revelar-se o “mais perfeito
prosador da língua”, na expressão de Almeida Garret, ou “o principal entre os
nossos escritores clássicos” como o considera Alexandre Herculano, que
classifica de “maravilhoso o seu estilo”.
Efetivamente, o autor da Vida do Beato Frei Bartolomeu dos
Mártires, da vida de S. Domingos e dos Anais de D. João III, é bem o modelo
acabado do prosador, onde não cabe mais nada a fazer senão admirar, tanto a
elegância da linguagem e simplicidade da forma, como o encanto das descrições e
a propriedade de imagens. Em pleno período barroco, numa época em que o
gogorismo dominou e manchou os grandes escritores do século, Fr. Luís de Sousa
conseguiu ilibar-se desse modo contrafeito de escrever, onde a clareza da ideia
é sacrificada à exuberância de elementos ornamentais.
Tinha razão o seu biógrafo D. Francisco Alexandre Lobo,
bispo de Viseu, ao traçar o seguinte elogio: “em toda a parte procedeu como a
corrente serena, que caminha sempre igual, sem topar em penedos e se despenhar
em catadupas”.
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