Segundo os dicionários correntes da língua portuguesa,
manipulação significa, entre outras coisas, preparar com a mão, imprimir forma
a alguma coisa com a mão. Mas não mencionam eles aplicações necessariamente
pejorativas. O “Dictionnaire du Français Contemporain” (Larousse, Paris,
1966), inclui dois sentidos pejorativos: transformar por operações suspeitas
(por exemplo, manipular estatísticas) e realizar manobra que vise enganar,
fraudar (por exemplo, manipulações eleitorais).
Nestes sentidos, já entrou também para o português corrente.
Diz-se, por exemplo, que um órgão de imprensa “manipula” as notícias antes de as
apresentar ao público. Isto é, "arranja" os dados de tal forma que a
notícia saia de acordo com os pressupostos ideológicos ou a linha política do
jornal. Acusa-se um governo de “manipular” os índices de inflação, a propaganda
comercial de “manipular” os consumidores, criando neles necessidades
artificiais ou impingindo-lhes produtos de segunda categoria como sendo os melhores
etc.
Outro dicionário francês moderno, o “Petit Robert” (PAUL
ROBERT, “Dictionnaire Alphabétique Analogique de la Langue Française”, Société
du Nouveau Littré, Paris, 1979) já regista em “manipulation” o significado de "domínio
[emprise] oculto exercido sobre um grupo (ou um indivíduo)".
Assim, a palavra "manipulação", de uns tempos a
esta parte, veio tomando aos poucos um sentido "talismânico" (cf.
PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, “Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo”,
Editora Vera Cruz, São Paulo, 1974, 5º. ed., pp. 49 a 59). E passou a ter um
significado cada vez mais amplo e indefinido, que lhe é conferido sobretudo por
hábeis formas de a utilizar. Poder-se-ia dizer que essa mesma palavra vem sendo
cada vez mais "manipulada" em sua significação...
Ela pode significar tudo e ao mesmo tempo nada. Quando
utilizada de modo a criar suspense e mistério, se transforma numa terrível
"arma semântica". Difama e pode tornar suspeita qualquer pessoa ou
grupo contra o qual seja lançada, à maneira de uma acusação evidente que
dispensa provas.
Provas, para quê? -- Tal como acontece com outras palavras
de efeito "talismânico", basta dizer que tal ou tal atitude é “manipuladora”,
para que muitas pessoas -- com base apenas em sensações inexplícitas que
adquiriram não sabem como nem onde, e impressionadas pela carga emocional que
acompanha o uso da palavra -- julguem que de facto a acusação está demonstrada
sem necessidade de provas.
O que fica frequentemente insinuado, na utilização talismânica da palavra, é que a manipulação envolve um tipo de influência maléfica e coercitiva sobre as pessoas. Maléfica porque oculta e inadvertida, visando tão-só atender a algum interesse inconfessado do manipulador. E coercitiva porque subjuga a vontade das vítimas que, o mais das vezes, nem teriam recursos para se defender contra tal forma de influência soez.
Em outros termos, manipulação seria uma forma de "coerção
mental" muito análoga a "lavagem cerebral".
Não deixa de ser desconcertante, por sinal, que em certos órgãos
de comunicação social se fale tanto em manipulação, nesta época de domínio
tirânico da televisão. Tal meio de influenciar penetra livremente em todos os
lares, e induz crianças e adultos, por vezes nações inteiras, sem que o
percebam claramente (mas não sem darem o seu consentimento, ao menos remoto,
pois é voluntariamente que se expõem a tal influência), a modificarem
radicalmente este ou aquele costume e, mesmo, a sua própria psicologia. A tal
ponto chega, em muitos casos, esta dependência da televisão, que o seu efeito
foi comparado ao de uma droga (cfr. MARIE WINN, “The Plug-in-Drug”, Bantam
Books, Nova York, 2ºa. edição, 1978, 258 pp.). Tudo isto -- é de notar -- sem
protesto global e eficaz da grande maioria dos responsáveis. Com que lógica,
pois, temer tanto a manipulação e os manipuladores?
É um erro imaginar o homem como mero recetor passivo das
influências de seu ambiente, “assim como a ideia de "lavagem
cerebral" parte de um falso pressuposto -- a negação da liberdade natural
e "inconfiscável" da inteligência e da vontade do homem -- também os
que utilizam expressões correlatas, tais como "manipulação mental",
"controle da mente", "persuasão coercitiva" etc. partem de
erro análogo.
Com efeito, negam eles algo de si evidente. Ou seja, que
toda pessoa está, em relação ao seu ambiente, num processo cognoscitivo e
volitivo de interação. Todos influenciam a todos. Mas a todos é dado, se
quiserem, conhecer e rejeitar as ações que recebem. E, portanto, não se pode
imaginar uma influência como que mecânica e irresistível em sentido único, como
se o homem pudesse ser reduzido duravelmente a mero recetor passivo de informações,
influências e pressões.
É o que explica a psicóloga social Trudy Solomon, da “National
Science Foundation”, de Washington. Após destacar que conceitos como
"controle mental", "reforma de pensamento", "persuasão
coercitiva" etc. não passam de reencarnações da desprestigiada expressão
"lavagem cerebral", ela mostra que praticamente toda forma de
influência humana pode ser abrangida por tais designações: "Pouco depois
de sua introdução o conceito de lavagem cerebral foi aplicado a uma variedade
de contextos, incluindo técnicas de doutrinação .... e a fenômenos do passado
como a Inquisição e certos processos de bruxaria. Por causa das conotações
predominantemente más e negativas que rapidamente ficaram associadas com a expressão
lavagem cerebral, foram inventados vários derivados semânticos mais neutros,
como controle da mente, coerção mental, reforma do pensamento, persuasão
coercitiva e menticídio”. É nestas últimas encarnações que o conceito de
lavagem cerebral tem sido usado ao longo dos anos, para designar praticamente
toda forma de influência humana, inclusive o hipnotismo, a psicoterapia, os
meios de comunicação de massa, a propaganda, a educação, a socialização [isto
é, a integração das pessoas na sociedade, a educação das crianças, as mudanças
de comportamento e uma miríade de formas conexas de técnicas de mudança de
atitude e de comportamento" (TRUDY SOLOMON, Programming and Deprogramming
the Moonies: Social Psychology Applied2, in DAVID G. BROMLEY and JAMES T. RICHARDSON,
“The Brainwashing ? Deprogramming
Controversy: Sociological, Psychological, Legal and Historical Perspectives”,
The Edwin Mellen Press, New York-Toronto, 1983, pp. 165-166).
Depois de citar o papel de Kurt Lewin na teorização do
comportamento humano sob a influência social, da interação que se dá entre a
pessoa e a influência do meio social, a psicóloga afirma que "do ponto de
vista cognoscitivo, o indivíduo submetido a técnicas de influência social
dentro do contexto de um grupo é visto como sendo um organismo ativo,
continuamente empenhado em estruturar e avaliar as informações que recebe” (TRUDY
SOLOMON, op. cit., p. 172).
Portanto, carece de qualquer fundamento a ideia, muito
explorada sensacionalisticamente, de um indivíduo que sofre passivamente a
influência de um grupo social sem ter noção disso, e sem capacidade para
apreciar as informações que lhe chegam.
(CORRÊA DE OLIVEIRA, PLINIO, Guerreiros da Virgem, Editora
Vera Cruz, São Paulo, dezembro de 1985, pp. 88 a 92)
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