Falar de São João Maria Vianney ‚ evocar a figura de um
padre excecionalmente mortificado que, por amor de Deus e pela conversão dos
pecadores, se privava de alimento e sono, se impunha rudes penitências e,
sobretudo, levava a renúncia de si mesmo a um grau heroico. Se é certo que
comumente não é pedido a todos os féis que sigam este caminho, a divina
Providência dispôs que nunca faltem no mundo pastores de almas que, levados
pelo Espírito Santo, não hesitem em encaminhar-se por estas vias, porque tais
homens operam com este exemplo o regresso de muitos, que se convertem da
sedução dos erros e dos vícios para o bom caminho e a prática da vida cristã! A
todos, o exemplo admirável de renúncia do cura de Ars, "severo para
consigo e bondoso para com os outros", [1] lembra de forma eloquente e
urgente o lugar primordial da ascese na vida sacerdotal. O nosso predecessor
Pio XII, de saudosa memória, no desejo de evitar certos equívocos, não hesitou
em precisar que é falso afirmar "que o estado clerical - justamente
enquanto tal e por proceder do direito divino - por sua natureza, ou pelo menos
em virtude de um postulado da mesma, exige que os seus membros professem os
conselhos evangélicos".[2] E o Papa conclui justamente: "O clérigo,
portanto, não está ligado, por direito divino, aos conselhos evangélicos de
pobreza, castidade e obediência".[3] Mas seria deformar o genuíno
pensamento deste Pontífice, tão cioso da santidade dos padres, e o ensino
constante da Igreja, acreditar que o padre secular é menos chamado à perfeição
do que o religioso. A realidade é totalmente diversa, porque o exercício das
funções sacerdotais "requer uma maior santidade interior, do que aquela
exigida pelo estado religioso".[4] E se, para atingir esta santidade de
vida, a prática dos conselhos evangélicos não é imposta ao padre em virtude do
seu estado clerical, não obstante ela apresenta-se a ele e a todos os
discípulos do Senhor, como o caminho mais seguro para alcançar a desejada meta
da perfeição cristã. Aliás, para nossa grande consolação, quantos padres
generosos o compreenderam no presente, não deixando por isso de continuar nas
fileiras do clero secular e pedindo a pias associações aprovadas pela Igreja
que os guiem e sustentem nos caminhos da perfeição!
Convencidos de que "a grandeza do sacerdócio está
na imitação de Jesus Cristo",[5] os padres estarão, pois, mais do que
nunca, atentos aos apelos do divino Mestre: "Se alguém quiser vir após
mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.…" (Mt 16, 24). O
santo cura d'Ars, segundo se afirma, "tinha meditado muitas vezes estas
palavras de nosso Senhor e esforçava-se por pô-las em prática".[6] Deus
concedeu-lhe a graça de se conservar heroicamente fiel a elas; e o seu exemplo
guia-nos ainda no caminho da ascese onde ele, resplandeceu brilhantemente pela
pobreza, castidade e obediência.
São João Maria Vianney, exemplo de pobreza evangélica
Primeiramente tendes o exemplo de pobreza, virtude pela
qual o humilde cura d'Ars, se tornou digno êmulo do patriarca de Assis, de quem
foi, na Ordem Terceira, discípulo fiel. [7] Rico para dar aos outros, mas pobre
para si mesmo, viveu num total desprendimento dos bens deste mundo, e o seu
coração verdadeiramente livre abria-se com generosidade a todos os que,
afligidos por misérias materiais ou espirituais vinham até ele de toda a parte
em busca de remédio. "O meu segredo é bem simples, dizia ele, é dar tudo e
nada guardar".[8] O seu desinteresse fazia-o atender a todos os pobres, sobretudo
os da sua paróquia, aos quais testemunhava extrema delicadeza, tratando-os
"com verdadeira ternura, com os maiores cuidados e até com
respeito".[9] Recomendava que nunca deixassem de ter atenções para com os
pobres, porque tal falta recai sobre Deus; e, quando um miserável batia à sua
porta, sentia-se feliz, ao recebê-lo, com bondade, por lhe poder dizer:
"Sou pobre como vós; hoje sou um dos vossos!".[10] No fim da sua
vida, comprazia-se em repetir: "Estou muito satisfeito; já não tenho nada
de meu; Deus pode chamar-me quando quiser".[11] Por isso, veneráveis
irmãos, podereis compreender como, de todo o coração, exortamos nossos queridos
filhos do sacerdócio católico, a meditar num tal exemplo de pobreza e caridade.
"A experiência cotidiana atesta - escrevia Pio XI, ao pensar no cura d'Ars
- que a ação dos sacerdotes de vida modesta, os quais, segundo a doutrina
evangélica, não procuram absolutamente seus próprios interesses, redunda em
extraordinários benefícios para o povo cristão".[12] E o mesmo Pontífice,
considerando o estado da sociedade contemporânea, dirigia também aos padres
este grave aviso: "Ao ver que os homens vendem e compram, tudo pelo
dinheiro, os padres caminhem desinteressadamente pelos engodos do vício, e
desprezando todo baixo desejo de ganhar, busquem almas e não dinheiro, a glória
de Deus e não a sua!" [13]
Aplicações aos padres de hoje
Estas palavras devem estar inscritas no coração de todos
os padres. Se há alguns que possuem legitimamente bens pessoais, que não se
prendam a eles! Que se lembrem, antes, da obrigação que formula o Direito
Canônico, a propósito dos benefícios eclesiásticos, "de dispender o
supérfluo com os pobres ou com as obras pias".[14] E queira Deus que
nenhum mereça a censura do santo pároco às suas ovelhas: "Quantos têm
dinheiro guardado, e tantos pobres a morrer de fome!".[15] Mas nós sabemos
que muitos padres vivem, de fato, em condições de verdadeira pobreza. A
glorificação de um dos seus, que voluntariamente se despojou de tudo e se
regozijava com o pensamento de ser o mais pobre da paróquia, [16] será para
eles um providencial estímulo para se dedicarem à prática de uma pobreza
evangélica. E se a nossa paternal solicitude pode servir-lhes de conforto,
saibam quanto nos regozijamos pelo seu desinteresse no serviço de Cristo e da
Igreja.
Mas, ao recomendar esta heroica pobreza, não
pretendemos, de forma nenhuma, veneráveis irmãos, aprovar a pobreza total a
que, por vezes, são reduzidos os ministros do Senhor nas cidades e no campo. No
seu comentário da exortação do Senhor ao desprendimento dos bens deste mundo,
São Beda, o Venerável, previne-nos contra qualquer interpretação abusiva:
"Não se deve crer que seja prescrito aos santos não conservar dinheiro
para seu uso pessoal ou para dar aos pobres, visto ler-se que o próprio
Senhor... tinha algum dinheiro para os gastos da Igreja nascente...; mas que
não se sirva Deus por causa disso, nem se renuncie à justiça com receio da
pobreza".[17] Pois o operário tem direito ao seu salário, (cf. Lc 10, 7)
e, fazendo nossas as preocupações do nosso predecessor imediato, pedimos
instantemente a todos os fiéis que correspondam com generosidade ao louvável
apelo dos bispos, desejosos de assegurar aos seus colaboradores recursos
convenientes.[18]
Sua castidade angélica
São João Maria Vianney, pobre de bens materiais, foi
igualmente exemplo de voluntária mortificação da carne. "Não há senão uma
maneira de se dar a Deus no exercício da renúncia e do sacrifício - dizia ele -
isto é, dar-se totalmente".[19] E, em toda a sua vida, praticou, em grau
heróico, a ascese da castidade.
O seu exemplo sobre este ponto parece, particularmente
oportuno, porque, em bastantes regiões, infelizmente, os padres são obrigados a
viver, em virtude do seu cargo, num mundo onde reina uma atmosfera de excessiva
liberdade e sensualidade. E a palavra de s. Tomás‚ para eles cheia de verdade:
"É por vezes mais difícil viver virtuosamente tendo cura de almas, por
causa dos perigos exteriores".[20] Além disso, muitas vezes, estão
moralmente sós, pouco compreendidos, pouco amparados pelos fiéis a quem se
dedicam. A todos, e, sobretudo, aos mais isolados e mais expostos, nós
dirigimos um apelo premente, para que toda a sua vida seja um puro testemunho
dessa virtude a que s. Pio X chamava "o mais belo ornamento da nossa
ordem".[21] E recomendamo-vos, insistentemente, veneráveis irmãos, que
procureis para os vossos padres, na medida do possível, condições de existência
e trabalho que estimulem a sua boa vontade. É preciso, a todo o custo, combater
os perigos do isolamento, denunciar as imprudências, afastar as tentações da
ociosidade ou os riscos do excesso de trabalho. Lembremo-nos igualmente, a este
respeito, dos magníficos ensinamentos do nosso predecessor na Encíclica Sacra
Virginitas. [22]
Foi dito do cura d'Ars: "A castidade brilhava no
seu olhar".[23] Na verdade, quem estuda a sua personalidade fica
surpreendido, não só pelo heroísmo com que este padre subjugava seu corpo (cf.
1 Cor 9,27), mas ainda pela força da convicção com que conseguia que a multidão
dos seus penitentes o seguisse. É que ele sabia, por uma longa prática do
confessionário, os males causados pelos pecados da carne. Por isso de seu peito
saíam estes gemidos: "Se não houvesse almas puras que aplacassem a Deus
ofendido pelos nossos pecados, quantos e quão terríveis castigos teríamos nós
que suportar!". E, falando com experiência, juntava ao seu apelo um
estímulo fraterno: "A mortificação tem um bálsamo e um sabor de que não
podem prescindir os que alguma vez os conheceram... Neste caminho, o que custa‚ o primeiro passo".[24]
Esta ascese necessária da castidade, longe de fechar o
padre num estéril egoísmo, torna o seu coração mais aberto e mais acessível a
todas as necessidades dos seus irmãos. Dizia otimamente o cura d'Ars:
"Quando o coração é puro não pode deixar de amar, porque encontrou a fonte
do amor, que é Deus".
Que benefício para a sociedade humana ter assim, no seu
seio, homens que, livres das solicitações temporais, se consagram inteiramente
ao serviço de Deus e dão aos seus irmãos a sua vida, os seus pensamentos e as
suas forças! Que graça para a Igreja ter padres empenhados em guardar
integralmente esta virtude! Com Pio XI, consideramo-la a glória mais pura do
sacerdócio católico, ela que nos parece "a melhor resposta aos desejos do
Coração de Jesus e aos seus desígnios sobre as almas sacerdotais". [25]
Não estaria também conforme com os desígnios da divina caridade a mente do
santo cura d'Ars, quando exclamava: "O sacerdócio ‚ o amor do Coração de
Jesus!"[26]
Seu espírito de obediência
São numerosos os testemunhos sobre o espírito de
obediência do santo, podendo afirmar-se que para ele a exata fidelidade ao
"prometo" da ordenação foi motivo para uma permanente renúncia de
quarenta anos. Durante toda a sua vida, com efeito, aspirou à solidão de um
santo retiro, e as responsabilidades pastorais foram para ele pesado fardo, do
qual por várias vezes tentou libertar-se. Mas sua obediência total ao Bispo foi
mais admirável. Por isso, veneráveis irmãos, temos o prazer de relatar algumas
testemunhas da sua vida: "Desde a idade de quinze anos este desejo (da
solidão) estava no seu coração para o atormentar e tirar-lhe a felicidade de
que poderia gozar na sua posição".[27] Mas "Deus não permitiu que
pudesse realizar tal desígnio. A divina Providência queria sem dúvida que,
sacrificando o seu gosto à obediência, o prazer ao dever, João M. Vianney
tivesse constantemente ocasião de se vencer".[28] "Vianney continuou
cura d'Ars com obediência cega e assim ficou até à morte".[29]
Esta total adesão à vontade dos superiores era, convém
afirmá-lo, inteiramente sobrenatural no seu motivo: era um ato de fé na palavra
de Cristo que dizia aos seus apóstolos: "Quem vos ouve, ouve a mim"
(Lc 10,16), e, para ser-lhe fiel costumava habitualmente renunciar à sua
própria vontade na aceitação do seu pesado encargo do confessionário e em todas
as tarefas cotidianas onde a colaboração entre confrades torna o apostolado
mais frutuoso.
Se, um dia, os sacerdotes sentissem a tentação de duvidar da
importância desta virtude capital, hoje tão facilmente esquecida, convençam-se
de que têm contra si as afirmações claras e nítidas de Pio XII, que atesta que
"a santidade da vida pessoal e a eficácia do apostolado têm por base e
sustentáculo a obediência constante e exata à sagrada hierarquia".[30]
Deveis também recordar-vos, veneráveis irmãos, com quanta força os nossos
últimos predecessores denunciaram os graves perigos do espírito de
independência no clero, tanto para o ensino da doutrina como para os métodos de
apostolado e para a disciplina eclesiástica.
[1] Cf.
Archiv. Secr, Vat., Congr. SS. Rituum, Processus, t. 227, p.196.
[2] Alloc.
Annus sacer; AAS 43(1951), p. 29.
[3] Ibid.
[4] S.
Tomás, Sum. Th. II-II, q.184, a. 8, in c.
[5] Cf. Pio
XII, Discurso de 16 abril de 1953: AAS 45 (1953), p. 288.
[6] Cf.
Arch. Secret. Vat., t. 227, p. 42.
[7] Cf.
Ibid. t. 227, p.137.
[8] Cf.
Ibid, t. 227, p. 92.
[9] Cf.
Ibid. t. 3897, p. 510.
[10] Cf.
Ibid, t. 227, p. 334.
[11] Cf.
Ibid. t. 227, p. 305.
[12] Carta
Enc. Divini Redemptoris; AAS 29 (1937), p. 99.
[13] Carta
Enc. Ad Catholici Sacerdotii; AAS 28 (193), p. 28.
[14] CIC.,
can.1473.
[15] Cf. Sermons
du B. Jean B. M. Vianney,1909, t, l, p. 364.
[16] Cf.
Arch. Secret. Vat., t. 227, p. 91.
[17] In Lucae
Evangelium Expositio, IV, in c.12; PL, 92, col. 494-495.
[18] Cf. Exort.
Apost. Menti Nostrae; AAS 42(1950), pp. 697-699.
[19] Cf. Archiv.
Secret. Vat., t. 227, p. 91.
[10] Summa theol.
II-II, q.184, a. 8, c.
[21] Exort. Haerent animo: Acta Pii X, IV, p. 260.
[22] AAS 46
(1954), pp.161-191.
[23] Cf.
Arch. Secret. Vat. t. 3897, p. 536.
[24] Cf.
Arch. Secr. Vat. t. 3897, p. 304.
[25] Carta Enc.
Ad Catholici Sacerdotii; AAS 28 (1936), p. 28.
[26] Cf.
Arch. Secr. Vat, t. 227, p. 29.
[27] Cf.
Ibid. t. 227, p. 74.
[28] Cf.
Ibid. t. 227, p. 39.
[29] Cf.
Ibid, t. 3895, p.153.
[30] Exort.
In auspicando: AAS 40 (1948), p. 375.
Carta Encíclica “Sacerdotii Nostri Primordia”, Papa João
XXIII , 1 de agosto de 1959, centenário da morte de São João Maria Vianney, o
Cura de Ars.