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sábado, 26 de setembro de 2020

Santo Cura d’Ars modelo do sacerdote pobre, casto e obediente, exemplo para os nossos dias

Falar de São João Maria Vianney ‚ evocar a figura de um padre excecionalmente mortificado que, por amor de Deus e pela conversão dos pecadores, se privava de alimento e sono, se impunha rudes penitências e, sobretudo, levava a renúncia de si mesmo a um grau heroico. Se é certo que comumente não é pedido a todos os féis que sigam este caminho, a divina Providência dispôs que nunca faltem no mundo pastores de almas que, levados pelo Espírito Santo, não hesitem em encaminhar-se por estas vias, porque tais homens operam com este exemplo o regresso de muitos, que se convertem da sedução dos erros e dos vícios para o bom caminho e a prática da vida cristã! A todos, o exemplo admirável de renúncia do cura de Ars, "severo para consigo e bondoso para com os outros", [1] lembra de forma eloquente e urgente o lugar primordial da ascese na vida sacerdotal. O nosso predecessor Pio XII, de saudosa memória, no desejo de evitar certos equívocos, não hesitou em precisar que é falso afirmar "que o estado clerical - justamente enquanto tal e por proceder do direito divino - por sua natureza, ou pelo menos em virtude de um postulado da mesma, exige que os seus membros professem os conselhos evangélicos".[2] E o Papa conclui justamente: "O clérigo, portanto, não está ligado, por direito divino, aos conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência".[3] Mas seria deformar o genuíno pensamento deste Pontífice, tão cioso da santidade dos padres, e o ensino constante da Igreja, acreditar que o padre secular é menos chamado à perfeição do que o religioso. A realidade é totalmente diversa, porque o exercício das funções sacerdotais "requer uma maior santidade interior, do que aquela exigida pelo estado religioso".[4] E se, para atingir esta santidade de vida, a prática dos conselhos evangélicos não é imposta ao padre em virtude do seu estado clerical, não obstante ela apresenta-se a ele e a todos os discípulos do Senhor, como o caminho mais seguro para alcançar a desejada meta da perfeição cristã. Aliás, para nossa grande consolação, quantos padres generosos o compreenderam no presente, não deixando por isso de continuar nas fileiras do clero secular e pedindo a pias associações aprovadas pela Igreja que os guiem e sustentem nos caminhos da perfeição!

Convencidos de que "a grandeza do sacerdócio está na imitação de Jesus Cristo",[5] os padres estarão, pois, mais do que nunca, atentos aos apelos do divino Mestre: "Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.…" (Mt 16, 24). O santo cura d'Ars, segundo se afirma, "tinha meditado muitas vezes estas palavras de nosso Senhor e esforçava-se por pô-las em prática".[6] Deus concedeu-lhe a graça de se conservar heroicamente fiel a elas; e o seu exemplo guia-nos ainda no caminho da ascese onde ele, resplandeceu brilhantemente pela pobreza, castidade e obediência.

São João Maria Vianney, exemplo de pobreza evangélica


Primeiramente tendes o exemplo de pobreza, virtude pela qual o humilde cura d'Ars, se tornou digno êmulo do patriarca de Assis, de quem foi, na Ordem Terceira, discípulo fiel. [7] Rico para dar aos outros, mas pobre para si mesmo, viveu num total desprendimento dos bens deste mundo, e o seu coração verdadeiramente livre abria-se com generosidade a todos os que, afligidos por misérias materiais ou espirituais vinham até ele de toda a parte em busca de remédio. "O meu segredo é bem simples, dizia ele, é dar tudo e nada guardar".[8] O seu desinteresse fazia-o atender a todos os pobres, sobretudo os da sua paróquia, aos quais testemunhava extrema delicadeza, tratando-os "com verdadeira ternura, com os maiores cuidados e até com respeito".[9] Recomendava que nunca deixassem de ter atenções para com os pobres, porque tal falta recai sobre Deus; e, quando um miserável batia à sua porta, sentia-se feliz, ao recebê-lo, com bondade, por lhe poder dizer: "Sou pobre como vós; hoje sou um dos vossos!".[10] No fim da sua vida, comprazia-se em repetir: "Estou muito satisfeito; já não tenho nada de meu; Deus pode chamar-me quando quiser".[11] Por isso, veneráveis irmãos, podereis compreender como, de todo o coração, exortamos nossos queridos filhos do sacerdócio católico, a meditar num tal exemplo de pobreza e caridade. "A experiência cotidiana atesta - escrevia Pio XI, ao pensar no cura d'Ars - que a ação dos sacerdotes de vida modesta, os quais, segundo a doutrina evangélica, não procuram absolutamente seus próprios interesses, redunda em extraordinários benefícios para o povo cristão".[12] E o mesmo Pontífice, considerando o estado da sociedade contemporânea, dirigia também aos padres este grave aviso: "Ao ver que os homens vendem e compram, tudo pelo dinheiro, os padres caminhem desinteressadamente pelos engodos do vício, e desprezando todo baixo desejo de ganhar, busquem almas e não dinheiro, a glória de Deus e não a sua!" [13]

Aplicações aos padres de hoje


Estas palavras devem estar inscritas no coração de todos os padres. Se há alguns que possuem legitimamente bens pessoais, que não se prendam a eles! Que se lembrem, antes, da obrigação que formula o Direito Canônico, a propósito dos benefícios eclesiásticos, "de dispender o supérfluo com os pobres ou com as obras pias".[14] E queira Deus que nenhum mereça a censura do santo pároco às suas ovelhas: "Quantos têm dinheiro guardado, e tantos pobres a morrer de fome!".[15] Mas nós sabemos que muitos padres vivem, de fato, em condições de verdadeira pobreza. A glorificação de um dos seus, que voluntariamente se despojou de tudo e se regozijava com o pensamento de ser o mais pobre da paróquia, [16] será para eles um providencial estímulo para se dedicarem à prática de uma pobreza evangélica. E se a nossa paternal solicitude pode servir-lhes de conforto, saibam quanto nos regozijamos pelo seu desinteresse no serviço de Cristo e da Igreja.

Mas, ao recomendar esta heroica pobreza, não pretendemos, de forma nenhuma, veneráveis irmãos, aprovar a pobreza total a que, por vezes, são reduzidos os ministros do Senhor nas cidades e no campo. No seu comentário da exortação do Senhor ao desprendimento dos bens deste mundo, São Beda, o Venerável, previne-nos contra qualquer interpretação abusiva: "Não se deve crer que seja prescrito aos santos não conservar dinheiro para seu uso pessoal ou para dar aos pobres, visto ler-se que o próprio Senhor... tinha algum dinheiro para os gastos da Igreja nascente...; mas que não se sirva Deus por causa disso, nem se renuncie à justiça com receio da pobreza".[17] Pois o operário tem direito ao seu salário, (cf. Lc 10, 7) e, fazendo nossas as preocupações do nosso predecessor imediato, pedimos instantemente a todos os fiéis que correspondam com generosidade ao louvável apelo dos bispos, desejosos de assegurar aos seus colaboradores recursos convenientes.[18]

Sua castidade angélica

São João Maria Vianney, pobre de bens materiais, foi igualmente exemplo de voluntária mortificação da carne. "Não há senão uma maneira de se dar a Deus no exercício da renúncia e do sacrifício - dizia ele - isto é, dar-se totalmente".[19] E, em toda a sua vida, praticou, em grau heróico, a ascese da castidade.

O seu exemplo sobre este ponto parece, particularmente oportuno, porque, em bastantes regiões, infelizmente, os padres são obrigados a viver, em virtude do seu cargo, num mundo onde reina uma atmosfera de excessiva liberdade e sensualidade. E a palavra de s. Tomás‚ para eles cheia de verdade: "É por vezes mais difícil viver virtuosamente tendo cura de almas, por causa dos perigos exteriores".[20] Além disso, muitas vezes, estão moralmente sós, pouco compreendidos, pouco amparados pelos fiéis a quem se dedicam. A todos, e, sobretudo, aos mais isolados e mais expostos, nós dirigimos um apelo premente, para que toda a sua vida seja um puro testemunho dessa virtude a que s. Pio X chamava "o mais belo ornamento da nossa ordem".[21] E recomendamo-vos, insistentemente, veneráveis irmãos, que procureis para os vossos padres, na medida do possível, condições de existência e trabalho que estimulem a sua boa vontade. É preciso, a todo o custo, combater os perigos do isolamento, denunciar as imprudências, afastar as tentações da ociosidade ou os riscos do excesso de trabalho. Lembremo-nos igualmente, a este respeito, dos magníficos ensinamentos do nosso predecessor na Encíclica Sacra Virginitas. [22]

Foi dito do cura d'Ars: "A castidade brilhava no seu olhar".[23] Na verdade, quem estuda a sua personalidade fica surpreendido, não só pelo heroísmo com que este padre subjugava seu corpo (cf. 1 Cor 9,27), mas ainda pela força da convicção com que conseguia que a multidão dos seus penitentes o seguisse. É que ele sabia, por uma longa prática do confessionário, os males causados pelos pecados da carne. Por isso de seu peito saíam estes gemidos: "Se não houvesse almas puras que aplacassem a Deus ofendido pelos nossos pecados, quantos e quão terríveis castigos teríamos nós que suportar!". E, falando com experiência, juntava ao seu apelo um estímulo fraterno: "A mortificação tem um bálsamo e um sabor de que não podem prescindir os que alguma vez os conheceram... Neste caminho, o que custa‚ o primeiro passo".[24]

Esta ascese necessária da castidade, longe de fechar o padre num estéril egoísmo, torna o seu coração mais aberto e mais acessível a todas as necessidades dos seus irmãos. Dizia otimamente o cura d'Ars: "Quando o coração é puro não pode deixar de amar, porque encontrou a fonte do amor, que é Deus".


Que benefício para a sociedade humana ter assim, no seu seio, homens que, livres das solicitações temporais, se consagram inteiramente ao serviço de Deus e dão aos seus irmãos a sua vida, os seus pensamentos e as suas forças! Que graça para a Igreja ter padres empenhados em guardar integralmente esta virtude! Com Pio XI, consideramo-la a glória mais pura do sacerdócio católico, ela que nos parece "a melhor resposta aos desejos do Coração de Jesus e aos seus desígnios sobre as almas sacerdotais". [25] Não estaria também conforme com os desígnios da divina caridade a mente do santo cura d'Ars, quando exclamava: "O sacerdócio ‚ o amor do Coração de Jesus!"[26]

Seu espírito de obediência

São numerosos os testemunhos sobre o espírito de obediência do santo, podendo afirmar-se que para ele a exata fidelidade ao "prometo" da ordenação foi motivo para uma permanente renúncia de quarenta anos. Durante toda a sua vida, com efeito, aspirou à solidão de um santo retiro, e as responsabilidades pastorais foram para ele pesado fardo, do qual por várias vezes tentou libertar-se. Mas sua obediência total ao Bispo foi mais admirável. Por isso, veneráveis irmãos, temos o prazer de relatar algumas testemunhas da sua vida: "Desde a idade de quinze anos este desejo (da solidão) estava no seu coração para o atormentar e tirar-lhe a felicidade de que poderia gozar na sua posição".[27] Mas "Deus não permitiu que pudesse realizar tal desígnio. A divina Providência queria sem dúvida que, sacrificando o seu gosto à obediência, o prazer ao dever, João M. Vianney tivesse constantemente ocasião de se vencer".[28] "Vianney continuou cura d'Ars com obediência cega e assim ficou até à morte".[29]

Esta total adesão à vontade dos superiores era, convém afirmá-lo, inteiramente sobrenatural no seu motivo: era um ato de fé na palavra de Cristo que dizia aos seus apóstolos: "Quem vos ouve, ouve a mim" (Lc 10,16), e, para ser-lhe fiel costumava habitualmente renunciar à sua própria vontade na aceitação do seu pesado encargo do confessionário e em todas as tarefas cotidianas onde a colaboração entre confrades torna o apostolado mais frutuoso.

Se, um dia, os sacerdotes sentissem a tentação de duvidar da importância desta virtude capital, hoje tão facilmente esquecida, convençam-se de que têm contra si as afirmações claras e nítidas de Pio XII, que atesta que "a santidade da vida pessoal e a eficácia do apostolado têm por base e sustentáculo a obediência constante e exata à sagrada hierarquia".[30] Deveis também recordar-vos, veneráveis irmãos, com quanta força os nossos últimos predecessores denunciaram os graves perigos do espírito de independência no clero, tanto para o ensino da doutrina como para os métodos de apostolado e para a disciplina eclesiástica.

[1] Cf. Archiv. Secr, Vat., Congr. SS. Rituum, Processus, t. 227, p.196.

[2] Alloc. Annus sacer; AAS 43(1951), p. 29.

[3] Ibid.

[4] S. Tomás, Sum. Th. II-II, q.184, a. 8, in c.

[5] Cf. Pio XII, Discurso de 16 abril de 1953: AAS 45 (1953), p. 288.

[6] Cf. Arch. Secret. Vat., t. 227, p. 42.

[7] Cf. Ibid. t. 227, p.137.

[8] Cf. Ibid, t. 227, p. 92.

[9] Cf. Ibid. t. 3897, p. 510.

[10] Cf. Ibid, t. 227, p. 334.

[11] Cf. Ibid. t. 227, p. 305.

[12] Carta Enc. Divini Redemptoris; AAS 29 (1937), p. 99.

[13] Carta Enc. Ad Catholici Sacerdotii; AAS 28 (193), p. 28.

[14] CIC., can.1473.

[15] Cf. Sermons du B. Jean B. M. Vianney,1909, t, l, p. 364.

[16] Cf. Arch. Secret. Vat., t. 227, p. 91.

[17] In Lucae Evangelium Expositio, IV, in c.12; PL, 92, col. 494-495.

[18] Cf. Exort. Apost. Menti Nostrae; AAS 42(1950), pp. 697-699.

[19] Cf. Archiv. Secret. Vat., t. 227, p. 91.

[10] Summa theol. II-II, q.184, a. 8, c.

[21] Exort.  Haerent animo: Acta Pii X, IV, p. 260.

[22] AAS 46 (1954), pp.161-191.

[23] Cf. Arch. Secret. Vat. t. 3897, p. 536.

[24] Cf. Arch. Secr. Vat. t. 3897, p. 304.

[25] Carta Enc. Ad Catholici Sacerdotii; AAS 28 (1936), p. 28.

[26] Cf. Arch. Secr. Vat, t. 227, p. 29.

[27] Cf. Ibid. t. 227, p. 74.

[28] Cf. Ibid. t. 227, p. 39.

[29] Cf. Ibid, t. 3895, p.153.

[30] Exort. In auspicando: AAS 40 (1948), p. 375.

Carta Encíclica “Sacerdotii Nostri Primordia”, Papa João XXIII , 1 de agosto de 1959, centenário da morte de São João Maria Vianney, o Cura de Ars.


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