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sábado, 7 de maio de 2011

São João Gualberto, fundador da Ordem de Vallombrosa

     Por volta do ano mil, João Gualberto nasce fidalgo de boa linhagem, descendente de nobres senhores de Val di Pesa. Educado para a carreira das armas (da qual era seu api um dos mais luzidos cavaleiros) revelou desde a infância forte pendor para as práticas religiosas.
     Com a idade, todavia, e o paterno exemplo, entrou Gualberto a frequentar o mundo, a inebriar-se nos prazeres, a locupletar-se de ouro e jóias, a envaidecer-se com as suas galas, e, conseguintemente, a desculpar actos que antes lhe pareciam indignos de gente sã. Era, pois, uma alma que se insinuava por entre os labirintos da perdição, insensível às pobrezas, aos trabalhos e às misérias que nesta vida se padecem; e teria sido uma alma condenada para sempre, se Deus a não houvesse restuito à bem-aventurança por meio de um notabilíssimo milagre.
     Certo fidalgo de Val di Pesa matara, por zelos amorosos, o nebre Ugo, irmão de Gualberto e morgado da família. Semelhante delito exigia uma vingança terrível! Assim o decidira o pai de Gualberto e com isso ele concordara... Vingança! Vingança! O sangue lava-se com o sangue, a morte com a morte se paga! Gualberto já não é o pálido rapaz de quinze anos, impregnado de ideias religiosas, mas o guerreiro disposto a esqudrinhar todos os rincões do universo até se fazer encontradiço com o assassino do morgado.
     Ei-lo, pois, a caminho de Florença, um dia de Sexta-feira da Paixão, pela estrada quase deserta, montado no seu cavalo branco. Súbito , enxerga um vulto que se avizinha, a pé, em direcção oposta. O caminho é estreito, dois não podem passar ao mesmo tempo. João Gualberto sofreia o ginete e encara fito a fito no desconhecido. Céus! É ele! É o matador do seu irmão! Rápido, arranca do cinto a reluzente adaga para cravá-la no peito do inimigo! Chegou a hora tão desejada! Mandá-lo-á para as chamas infernais! Voluptoso istnate! Inesperada providência! Gualberto prepara o golpo, alça o ferro, vai ferir, quando repentinamente se lhe interiça o braço, fica-lhe hirto, rigído, teso, imóvel no ar. O inimigo ajoelhara-se! O inimigo abrira os braços em cruz, - como o Cristo no Calvário! - "Senhor!" gemia, com súplicas de vencido, "em nome da Paixão de Jesus Cristo que hoje celebramos, amerciai-vos de mim! Arrependido estou do meu crime e vos imploro que tenhais para comigo a mesma infinita clemência que teve Jeuss para com os maiores pecadores!"
     A atitude do mísero comove o cavaleiro. Baixando o punhal, estende-lhe a mão e fala-lhe desta maneira: "Não posso negar-vos o que em nome de Jesus Cristo me pedis! Rogai a Deus que me perdoe do acto que o meu braçao ia praticar!"
      Separaram-se. João Gualberto continuou o seu caminho até Florença, o outro a Val di Pesa. A porta da igreja de São Miniato estava aberta. A igreja regorgitava de povo. Gualberto entra, corre ao altar-mór, cai de joelhos, contempla em acendrado êxtase o grande Cristo de marfim. E reza, reza, reza. Súbito, julga perder a noção da realidade. O sangue gela-se-lhe nas veias. É crível o qu vê? É sonho? É delírio? Do alto da Cruz o Cristo fita-o com benegníssima ternura e acena-lhe com a cabeça para significar-lhe que aprovara a sua conduta!
     João Gualberto chora de alegria e sente dentro de si uma dolçura celestial. Todas as virtudes da sua infância resplandecem de novo no seu espírito milagrosamente regenerado. O seu destino mudara. Sai da igreja, precipita-se ao convento anexo, deita-se aos pés do abade, corta os longos cabelos, despoja-se dos vestidos airosos, enroupa-se no rude linho do hábito monástico, implora com ardente fé o resguardo de um albergue cristão, e daquela hora em diante desaparece do mundo!
     Inúteis foram as tentativas do pai-cavaleiro indo cercar o convento com os seus archeiros e aguazís para obter a libertação de Gualberto! Inúteis as suas ameaças de trucidar os frades e de pôr o fogo ao mosterio se lhe não restituissem o filho! Gualberto morrera para o mundo, desafeiçoara-se das suas vaidades, recolhera-se definitivamente ao seio da Religião! E foi um dos mais perfeitos santos da Igreja por suas rigorosas penitências, seus longos jejuns, suas flagelações corporais, suas vigílias sem termo, seus cilícios. Em breve era um novo homem, transformado pelo milagre, modelo de todas as virtudes, heróico até ao sacrifício!
     Por fim, ao cabo de algum tempo, e na companhia de outro frade do seu convento, embrenhou-se numa região onde cresciam pinheirais em grande quantidade, chamada por isso Vallombrosa (vale sombrio), e ali, com o devoto auxílio da Abadessa de Santo Hilário, fundou a Ordem de Vallombrosa, a qual, em 1070, o Papa Alexandre II aprovou, e na qual imperam o retiro, o silêncio, o desapego à vida terrena, a prática da pobreza, da penitência e da austeridade.
     A fama das suas virtudes em breve se espalhou por toda a Itália, a ponto de fazer o Papa Leão IX uma viagem a Passignano (onde João Gualberto já havia fundado um novo convento) especialmente para ver e lhe falar.
     A 12 de Julho de 1073, rodeado de todos os abades e superiores da sua Ordem, dos quais afectuosamente se despediu, recebeu a Extrema-Unção; e como era um justo, elevou-se ao etéreo reino dos justos! Canonizado pelo Papa Celestino II, começou a viver sobre os altares aquele brilhante gentilhomem de capa e espada, para quem durante muitos anos só valiam os ouropeis do luxo e os falazes prazeres da vida!

(Luis Guimarães Filho, Fra Angélico, ed. Vozes, pag 37-41)

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