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domingo, 8 de maio de 2011

A mediocridade e o egocentrismo na história de Eça de Queiroz sobre o pé da Luisa Carneiro


Em 1907, Eça de Queirós publicou o livro "Cartas Familiares e Bilhetes de Paris". Nele encontramos a narrativa da indeferença diante de grandes hecatombes ocorridas no Oriente, de tragédias menores na Europa e da importância dada a um incidente, ocorrido com uma senhora conhecida, a Luísa Carneiro, que torceu um pé. Ao comentar o texto, o Professor Plinio Corrêa de Oliveira, numa reunião do dia 27 de agosto de 1971, aplica a história para os nossos dias e adverte para o perigo de sermos mediocres e egocentricos, interessando-nos apenas pelas nossos afazeres e pela nossa vida.

Mas eu não sei, meus amigos, se estas desgraças realmente vos interessam, vos comovem – porque a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som. A mesma dura lei física rege desgraçadamente a acústica e a sensibilidade. É sempre em ambas o idêntico e tão racional princípio das ondulações, que vão decrescendo à maneira que se afastam do seu centro, até que docemente se mobilizam e morrem: se elas traziam um som que vinha vibrando – o som cala quando elas param: se traziam um terror que vinha tremendo – o terror finda quando elas findam.

Bruscas, grossas, frementes, rápidas em torno ao choque que as produziu, essas ondulações não são mais, nos horizontes remotos, do que um vago, quase liso arfar, que mal se diferença da inércia. Senão vede! Em Pequim, subitamente, uma tarde, ribomba um pavoroso trovão – e ao mesmo tempo pega fogo na vistosa cabaia de um mandarim muito ilustre, que morre queimado. Por todo Pequim a impressão é tremenda. Até o imperador, filho do Sol, nos seus grandes jardins, estremeceu, aterrado com aquele imprevisto troar de um céu puro: e nas vielas mais sórdidas os coolies mais piolhentos interromperam um momento o seu negro trabalho para lamentar com exclamações o mandarim muito ilustre. Mas aí está! A vinte ou trinta léguas de Pequim o terrifico trovão foi apenas um rumor que se confundiu com o rolar das carroças nas lajes – e, quando se contou nas lojas loquazes dos barbeiros o desastre do mandarim em chamas, só algum nédio funcionário, com sabão na bochecha, murmurou oficialmente algum «ah!» desinteressado e mole...

É que o som do trovão e a emoção do desastre vieram trazidos por ondulações, que, a trinta léguas de Pequim, seu centro vivo, já se alisavam, imobilizavam, morriam.

E quando aqui na Europa, de manhã, sabemos pelo telégrafo bisbilhoteiro do mandarim e do trovão, nem o nosso ouvido sente o mais ténue som, nem o nosso coração a mais ténue piedade.

Não ondularam até nós as ondulações acústicas e emotivas. E é com absoluta placidez que murmuramos: «Houve em Pequim um grande trovão; e – tem graça! – ardeu um mandarim!»

Mas então essa confraternidade humana – pela sublime força da qual nada do que é humano deve ser alheio ao homem? Não existe? Oh, certamente – mas para todo o homem, mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro. Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente desarmonizando em relação ao seu sentimento, de sorte que os mais remotos já quase os não distinguem da Natureza inanimada. Quando qualquer de nós, no seu quieto e salubre bairro, ouve contar que uma furiosa peste matou trinta mil patagónios, fica exactamente penetrado daquela quantidade de compaixão que o invadiria ao saber que um furacão derrubara trinta mil árvores de um bosque. E de um bosque muito longínquo, de uma região muito desconhecida! Porque se as árvores destruídas fossem as do nosso doce Bosque de Bolonha, que nós amamos, tão ornadas e verdes em Maio, tão puramente vestidas de branca neve quando o Inverno se faz elegante e fino – a nossa mágoa teria uma intensidade infinitamente mais viva do que com a aniquilação desses vastos milhares de patagónios.

E esta estreiteza da emoção deriva de leis tão fatais que não se dá somente nas almas de caridade estreita – mas ainda nas mais ternas e nas mais largas, naquelas que parecem abrigar na sua amplidão do padecer humano... O bom senhor S. Vicente de Paulo, a quem o encontro de uma criancinha tremendo de frio ao canto de uma rua arrancava prantos desolados, que corriam enquanto ele corria com a criancinha sofregamente apertada nos seus braços, só teria um pálido e resignado suspiro quando ouvisse que, também na Tartária, em outras vielas regeladas, outras criancinhas tiritavam e choravam – se é que a homem tão ocupado com as misérias de França restava tempo para suspirar com as misérias da Tartária.

E até talvez o muito divino S. Francisco, o adorável pobrezinho de Assis, irmão de todos os seres e para quem os próprios passarinhos das veigas de Itália eram irmãos muito queridos, não sentisse a sua costumada ternura, tão alvoroçada e activa, pelos pobres da Noruega, e não se reconhecesse inteiramente irmão dos pardaizinhos da Finlândia!

A superior sapiência das nações já formulou esta lei naquele seu fino adágio: «O coração não sente o que os olhos não vêem.» Para chorar é necessário ver. A mais pequenina dor que diante de nós se produza e diante de nós gema, põe na nossa alma uma comiseração e na nossa carne um arrepio, que lhe não dariam as mais pavorosas catástrofes passadas longe, noutro tempo ou sob outros céus. Um homem caído a um poço na minha rua mais ansiadamente me sobressalta que cem mineiros sepultados numa mina da Sibéria – e um carro esmagando a pata de um cão, em frente à nossa janela, é um caso infinitamente mais aflitivo do que a heróica e adorável Joana d’Arc queimada na praça de Ruão!

A distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de angústia ou pranto. Hoje certamente ninguém, a não ser algum velho e alto dignitário da Igreja ou do Estado, assistiria, com os olhos secos e o coração quieto, ao suplício de Joana d’Arc – mas nenhum fisiologista garantiria a sanidade intelectual de um sujeito que, na solidão da sua alcova, com as janelas cerradas, se desfizesse em lágrimas por os Ingleses terem outrora supliciado Joana d’Arc.

No entanto, vós observais, amigos, que já repetidamente chorastes (porque sois bons) com dores humanas, não somente sucedidas longe do vosso bairro, mas fora do vosso século; e algum mesmo me mostrará, como emblema irrecusável da confraternidade humana, o lenço sentidamente humedecido na véspera ao escutar os adeuses de Luís XVI aos filhos na prisão do Templo, ou mesmo a antiga Inês de Castro balbuciando as suas súplicas aos pés do antigo Afonso IV!

Decerto! E mesmo já muitas vezes tereis sufocado generosos soluços com misérias e tormentos de criaturas que só viveram no mundo aéreo da imaginação e do sonho. Mas quando, onde foi que assim vos comovestes, tão humanamente? Quando? Onde? No teatro, ou nas páginas de um romance, ou mesmo através dos sinceros versos de um poema, quando a arte, encarnando os seres dolorosos que concebeu ou ressuscitando com flagrante e magnífica realidade as figuras mortas da história, torna durante um momento essas criaturas, não somente vossas contemporâneas, mas vossas vizinhas, moradoras no bairro em que morais, respiradoras do ar que respirais, e pertencentes portanto àquela porção de humanidade próxima e tangível, cujas dores se partilham, porque confinam com as nossas... E depois, tal sujeito – que choramingou, no fundo do seu camarote, assistindo à morte da Dama das Camélias, morta pela milésima vez, na sua alcova de lona e papelão – recolherá a casa e lerá no jornal, com absoluta indiferença, mastigando a torrada, que duzentas mulheres, com os filhinhos nos braços, morreram afogadas num naufrágio, longe, nos mares da Indochina! Sim, amigos, essas duzentas mães afogadas nas vagas indochinesas certamente vos serão estranhas, e como não existentes! Se elas tivessem naufragado nos mares dos Açores, já sem dúvida tão patética nova vos arrancaria algum vago murmúrio de simpatia. Mas se elas houvessem perecido, elas e os pobres filhinhos, na baía do Rio de Janeiro, que incomparável catástrofe – e como vós correríeis pelas ruas, pálidos cheios de espanto!

Que digo eu? Para vos comover nem seriam necessárias duzentas desgraçadas – bastaria que naufragassem duas, se vós as conhecêsseis de nome e de rosto! Porque, segundo a cruel lei física que regula os fenómenos da emoção – um empregado da Alfândega que caiu de um barco e desapareceu na baía do Rio de Janeiro vale, para o habitante do Rio, mil pescadores despedaçados sobre os rochedos nas costas da Islândia!

Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração!

Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa outras senhoras costuravam.

Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com um sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da Natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a Terra.

Ela lia as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas...» As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa – e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados...». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!» A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas... Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma então teve um «oh!» de dolorida surpresa. No Sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilando causara três mortes, onze ferimentos...» Uma curta emoção, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses... Todos lamentaríamos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.

A leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso, e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno.... E, de repente, solta um grito, leva as mãos à cabeça:

– Santo Deus!...

Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:

– Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista... Esta manhã! Desmanchou um pé!

Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.

As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.

Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.
Comentários do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira
É um tal primor de descrição, que a gente fica quase sem coragem de fazer um comentário. Porque depois de uma coisa elegantíssima, levíssima, entrar com o raciocínio e o bom senso...
Mas o que ele sustenta aqui não é de todo isento de verdade, há uma certa parcela de verdade. Quer dizer, se a caridade começa pelos mais próximos, é natural que a pessoa sinta mais o que acontece em relação aos circunstantes.
Depois, também é natural que, tendo o homem sensibilidade e sendo a sensibilidade algo que se impressiona com o que passa pelos sentidos, que também as coisas que atingem a sensibilidade causam ao homem uma impressão maior. Mas devemos distinguir o que é a impressão do que é um juízo que se faz a respeito do acontecimento. Devemos distinguir a pura reação emotiva do que é a atitude da inteligência e da vontade diante de um determinado ponto.
Por exemplo, se eu vir de repente um ônibus passar por cima de um gato e matá-lo, o seu sangue jorrar até mim e os seus miolos chegarem até ao meu sapato, evidentemente o facto me causa uma sensação de destruição que é maior do que saber que a esta hora está saindo para o cemitério da Consolação ou do Araçá o enterro de um homem que eu não conheço.
Quer dizer, isto está na estrutura do ser humano. É uma coisa razoável. Mas é razoável também que o ser humano dotado de razão e que conhece as limitações e contingências da sua estrutura - sobretudo depois do pecado original - que ele exerça  sobre si mesmo um efeito formativo e que saiba restabelecer, na medida do necessário, a escala dos valores.
De maneira tal que seja mais capaz de interesses, mais capaz de verdadeira dedicação pelas coisas que não o tocam de perto, mas que tocam a Igreja Católica, que tocam a salvação das almas, que tocam a realização dos planos da Providência, do que os pequenos fatos miúdos que o cercam. Porque, do contrário, nós devemos dizer que esse homem não só é irracional, mas - facto ainda mais grave - que não tem espírito de fé.
O que vem a ser o espírito de fé? É exatamente aquela excelência da fé, pela qual a pessoa julga os factos e as pessoas segundo os princípios da fé. É uma espécie de aplicação da fé no analisar os factos, as pessoas e as circunstâncias.
Ora, alguém ouve falar, por exemplo, que haverá uma novena na própria Paróquia e se interessa muito, mas ouve dizer, por exemplo, que Nossa Senhora apareceu em Fátima e a pessoa se interessa menos (porque Fátima é longe e é um outro continente), não julga as coisas nem de acordo com a razão, nem de acordo com o espírito de fé.
Quer dizer, é um acto de perfeita imbecilidade e no fundo de falta de fé, fora de dúvida. Por que? Porque é facto que Fátima está em Portugal. “X” nunca terá estado em Fátima nem saberá localizar Fátima no mapa, não teve nenhuma emoção porque não viu o bailado do sol e as cores que o firmamento tomou por ocasião da aparição de Nossa Senhora, não estava lá nem com Jacinta, nem com Francisco, nem com Lúcia. Mas tem inteligência e tem fé para julgar a importância do acontecimento e para se interessar mais por isso, do que por algum fatinho que lhe diz respeito de perto.
Entretanto, em qualquer dos casos, o facto é tão menor, que a pessoa tem que retificar, tem que adquirir uma segunda natureza, de acordo com a qual julgue as coisas na proporção da sua própria importância, e não em função de si mesmo. O ceder a esse pendor espontâneo, que ele descreve tão bem e que justifica com argumentos tão ruins, o homem faz o centro do universo não a Deus, Seus desígnios, Seus direitos, mas a si mesmo, e tudo tem importância na medida em que toca à minha pessoinha, segundo o que à minha pessoa importa.
Evidentemente isto é uma deformação. E é uma deformação muito grave - como acabo de dizer e é preciso insistir - porque conduz numa virtual negação da catolicidade da Igreja que se define como uma sociedade universal e sobrenatural, o Corpo Místico de Cristo e em que tudo vale na medida em que se relaciona com Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas a Igreja Católica se definiria assim: é uma sociedade que tem vida na medida em que Ela toca a mim e que é inerte, esclerosada, morta na medida em que está longe de mim...!
Se o mundo católico fosse medíocre como Eça de Queirós pinta aqui, não teria havido as Cruzadas, por exemplo. Porque as Cruzadas foram libertar o Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo, que estava muito distante de todas as pessoas que para lá caminharam... Não teria havido cruzadas também para reduzir os bárbaros que atacavam o norte da Europa, ou para expulsar os maometanos...
Sabemos, por exemplo, que os monges de Cluny se interessaram enormemente pelas Cruzadas na Espanha e que isto foi um fator decisivo para a vitória que elas obtiveram na Espanha.
Eu pergunto: o que ia fazer ali um francês? Os sarracenos tinham sido esmagados em Poitiers e não voltariam mais. Não era interesse da França, era interesse da Igreja em terras da Espanha, como em qualquer outra terra. Por que? Porque a Igreja é universal!
Os missionários. Por que vieram evangelizar os índios? Por que vieram acompanhando os portugueses e os espanhóis? Eles vieram por causa de um interesse que era todo ele religioso e que não tinha nada com a emoção próxima,  sensível.
Quer dizer, toda vida da Igreja Católica seria diversa e seria incoerente com a sua própria missão, se os homens capitulassem diante desse vício, desse estado de espírito.
Alguém me dirá: “Mas Dr. Plínio, acontece que esse estado de espírito é profundamente enviscerado no homem...”
Eu digo: é por isso que eu estou falando. Se ele não fosse profundamente enviscerado, não adiantava falar. E a Igreja Católica tem exatamente os recursos sobrenaturais para destruir no homem defeitos profundamente enviscerados nele. O que   há de mais profundamente enviscerado no homem do que o pecado original? É uma coisa tremenda! Pois está bem. A Igreja existe tendo sua ordem moral como finalidade de ajudar o homem a combater todos os defeitos que o pecado original produz nele.
Os senhores compreendem que é preciso portanto uma vigilância para a gente habitualmente não ter esta mentalidade, para habitualmente não ser "marcusiano" e não se deixar impressionar pelas coisas que vê. Caso contrário, não tomaremos na devida conta o que não se vê...
É preciso saber, portanto, guardar distância em relação às coisas que vê, tratá-las com certa isenção, com certa soberania, para depois poder fazer o balanço entre as coisas, num plano mais elevado que o da sensação.
Porque no plano da mera sensação, a gente naufraga! O pé da Luizinha Carneiro nos interessa mais do que, por exemplo, a possibilidade de eleição de um novo Papa em Roma, com a designação de vários anti–papas.
Quer dizer, cai-se numa tal mediocridade e - me perdoem a palavra – numa tal asnice, numa tal vacuidade de espírito, que é verdadeiramente de  chorar. É uma tal desordem mental, uma tal incapacidade de dar às coisas o valor próprio que elas devem ter, que toda a boa formação segundo a doutrina católica fica falseada, todas  as perspectivas delas decorrentes ficam adulteradas completamente.
Se se quiser dizer que agir assim não é espontâneo, respondo que é verdade. Mas então há um mundo de ações triviais, deselegantes, censuráveis, até criminosas, que são espontâneas também! O espontâneo não justifica nada. Há uma coisa exatamente que é feita para canalizar, para retificar o natural, para corroborá-lo no que ele tem de bom e que se chama educação, formação espiritual, formação moral. De maneira que essa história de dizer que não é “natural” não justifica coisíssima nenhuma. E isto supõe de uma rotação, mas uma rotação viva, uma verdadeira vigilância.
Os senhores me dirão: “Mas Dr. Plínio, depois de uma leitura tão deliciosa como essa, o senhor impinge uma consideração  deste tipo!”
É exatamente, é como se faz com um doente: tem a cápsula e dentro o remédio amargo. Eu não pude pôr a coisa amarga dentro da cápsula, então dei a cápsula em separado. Ela é doce e agradável e o remédio amargo depois... Os senhores não me levem a mal.
Já é tarde e a Dona Luizinha Carneiro tem que dormir. De maneira que vamos encerrar a reunião, se não houver objeções ou perguntas.
(Pergunta: Qual a diferença entre impressão e juízo. E como fazer para uma pessoa que não tenha facilidade para analisar, como saber se está agindo bem...)
Pois não. Eu acho que a sensibilidade quase atrapalha. Digo “quase”. A questão não é saber o seguinte: foi desencadeada uma perseguição religiosa num lugar “X”  e eu estremecer no sentido sensível, nervoso, do termo. Não é isto. Mas é eu fazer um juízo a respeito da gravidade desse acontecimento, à vista das razões sobrenaturais e às vezes também materiais, que me levam a dar a este acontecimento toda sua gravidade. E depois ser capaz de cumprir, a propósito deste acontecimento, meu dever, que será de uma oração, de uma ação conforme o caso. Mas eu saber cumprir o dever a esse respeito. Se sei cumprir o meu dever a tal propósito, eu estou em ordem. É um sintoma prático, um pouco grosso, que deixa passar uma parte da realidade, mas que para um começo de vigilância nesta matéria, já serve bem.

Não sei se me exprimi com clareza.

Sei que existe uma perseguição religiosa muito violenta, vamos dizer, na Polônia. Se eu estou com o meu horário muito cheio, tenho uma série de obrigações que me são próximas e imediatas, não posso deixar deveres que eu tenho, para ficar rezando pela Polônia. Mas a minha oração deve ter o valor correspondente ao que um católico deve sentir, sabendo que na Polônia está havendo uma perseguição religiosa. Porque essas coisas se sentem muito mais pela qualidade do que pela quantidade. E isto Deus tem o direito de esperar de mim.

(Pergunta: As pessoas tendem a se interessar também muito mais pelo próprio setor em que trabalham do que por outro...)

Ah! Mas é a mesma coisa do "pé da Luisa Carneiro", acrescido de um adjetivo: megalomania! Quando eu estou numa roda de católicos praticantes, e alguém fala a respeito do próprio apostolado, fica quase impossível, às vezes, a gente manter uma conversa comum. Porque quando a gente conversa com cada um sobre o apostolado dele, ele se acende e fala... e todos os outros ficam dormitando. Quando aquele para de falar, a gente - para ver se anima a roda - passa a palavra para outro e vê se aquele falando os outros se interessam também. Mas é só aquele que se interessa. E quando a gente fala de um apostolado geral, que não concerne a nenhum dos presentes, dormem todos...

Mas é por que? Porque aquele indivíduo faz o apostolado tendo como centro o próprio eu. É o que ele faz que lhe interessa. No fundo, em grande parte, porque o agente é ele. Ele considera mais o agente do que a finalidade da ação. Então, por causa disso, por egocentrismo, ele se interessa só por aquilo que faz.

E é uma coisa lamentável, porque isto, os senhores sabem o que acarreta? Desvia os auxílios de Nossa Senhora do apostolado. Por quê? Porque o apostolado dá certo, por causa da graça. O fator de eficácia do apostolado é a graça. A graça não ajuda o apóstolo que procura fazer apostolado para aparecer, ou ao menos para fruir o próprio êxito. A graça ajuda o apóstolo que procura fazer o apostolado desinteressadamente, por amor à Igreja Católica. A esse a graça ajuda. Mas esse, se  faz o seu apostolado desinteressadamente, ele gostará tanto de ouvir falar do apostolado de outros como do seu próprio. E se o apostolado dos outros é mais importante, ele procurará evitar de falar sobre o seu próprio apostolado, para ter ocasião de se informar de como vai a Causa católica numa Ponte Nova (cidade brasileira do estado de Minas Gerais), por exemplo.

Não é como certa vez aconteceu. Fui à Europa, voltei, e fiz uma viagem a uma cidade de tamanho reduzido, onde visitei pessoas várias. Chego lá, começa a conversa, as pessoas do local começam a me contar uma torrente de coisas do Bispo da região, do Monsenhor local, do Cônego local, e que tinha feito não sei o que... bá, bá, bá, bá, durante uma hora e tanto. No fim a pergunta: “E como está a situação da Igreja na Europa? Você conta algo?”  É de cheio a mentalidade “pé da Luíza Carneiro”! É uma deformação! E o apostolado todo se deforma assim.

Dom Jean Baptiste Chautard explica eximiamente no seu livro “A Alma de Todo Apostolado” que se o apóstolo se acha entupido de egocentrismo, a graça para tocar as almas não atua.

Não sei se está claro isso. Muitas vezes há pessoas que se contristam porque o seu apostolado não é eficaz. Eu tenho vontade de dizer:  Meu caro, em que medida você se interessou pelo apostolado dos outros? Nesta medida, o seu apostolado poderia ser mais eficaz, porque já não estaria só você em cena, mas estaria a Causa católica. Mas se é você, você, você e Nossa Senhora entra no assunto a propósito de você... como é que você quer que este apostolado seja um veículo de graças?! Está todo entupido de egocentrismo! Como é que a graça pode passar através disso? É impossível. É só ler “A Alma de Todo Apostolado” de Dom Chautard. Dom Chautard explica isso eximiamente, magnificissimamente.


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