Tomás de Canterbury foi um dos homens que mais brilhantemente lutou pela Igreja, na Inglaterra do século XII.
Bossuet, o famoso orador francês, no panegírico que fez deste
santo, glorificou o Primaz da Inglaterra chamando-o de “heroico defensor das
liberdades cristãs”: "A Igreja", disse ele, "precisava de sangue
para fortalecer a sua autoridade, como o Sangue divino tinha sido derramado
para o estabelecimento da sua doutrina". Foi para o triunfo desta nobre
causa que Tomás Becket dedicou todos os seus esforços, tornando-se num modelo
de coragem inflexível, intrépido até a morte.
A situação da Igreja da Inglaterra na segunda metade do século
XII era aproximadamente aquela que muitos dos nossos legisladores gostariam de
impor: a sujeição do poder religioso ao poder. civil. O homem que, então,
sonhava em oprimir o catolicismo na Grã-Bretanha ou, pelo menos, substituí-lo
por uma Igreja nacional, chamava-se Henrique Plantagenet: um príncipe traiçoeiro
e violento, no qual, como bem assertivamente expressou o Beato Frederico
Ozanam, "o espírito da tirania elevou-se ao poder supremo, mas encontrou
na pessoa de Tomás Becket uma incalculável força de oposição”.
Depois de ter sido o primeiro dos ministros e dignitários da
coroa, Tomás Becket ocupou a cátedra primacial de Canterbury. No dia da sua
coroação, o bispo fez-lhe a seguinte pergunta: "Resta-me pedir-lhe que
escolha entre duas coisas que não me parecem compatíveis e que declare o que
prefere: os favores e obséquios do rei desta terra, ou a do Rei dos céus. —
“Com a ajuda de Deus”, respondeu Tomás, “a minha escolha já está feita. Jamais,
por amor de um rei desta terra e para preservar os seus favores, renunciarei à
graça do Rei do Céu”.
Na sua nova morada, o Primaz, segundo as palavras de Ozanam,
“não conservou outra pompa senão a da esmola e da hospitalidade”. Ali, levava a
vida laboriosa e mortificada de um monge beneditino. Prevendo que, como
sucessor, Santo Anselmo, teria de continuar os mesmos combates contra os
poderes do mundo, escolheu-o como modelo: não deveria, aliás, a seu exemplo,
fazer prevalecer sobre as exigências régias o non possimus da fé?
No primeiro debate, a questão polémica entre Henrique II e Tomás
Becket foi uma questão da jurisdição. Um cônego de Canterbury insultou oficiais
reais. De acordo com a disciplina da época, o tribunal do arcebispo, – o único
autorizado, em tal caso – condenou o culpado a açoitamento e suspensão
temporária do ministério e benefícios inerentes ao seu cargo. Mas Henrique II,
considerando esta sentença muito leve, quis encaminhá-la ao tribunal civil. Tomás
protestou em nome do direito da imunidade que os membros da Igreja tinham. Este
foi o início de uma luta que seria tão longa, quanto dolorosa.
Henrique II, para atingir os seus objetivos, resolveu então
restabelecer os chamados “costumes reais”, que tornavam qualquer dignitário
eclesiástico sujeito à autoridade secular. A partir de então, desapareceu a
hierarquia católica, cujos membros se renovavam e sucediam-se por transmissão
legítima. Da mesma forma, o Papa e os Bispos perderam a sua jurisdição e não
tinham mais poder coercitivo ou penal sobre os dissidentes em assuntos
religiosos. Os “costumes reais” eram, portanto, uma verdadeira carta de
servidão. Ao separar a Igreja da Inglaterra da grande sociedade cristã, ela foi
despojada da sua liberdade primitiva para rebaixá-la aos pés do trono como uma
aristocracia vassala. Basicamente, o que Henrique Plantagenet buscava era
destruir a imunidade eclesiástica, colocar as duas espadas em suas mãos e fazer
da Igreja um instrumento do reinado. A esta pretensão régia, Tomás opôs-se fortemente
e respondeu que observaria os “costumes do reino”, "menos a honra e os
direitos da sua ordem, salvo ‘ordine suo’" segundo a fórmula
utilizada na ordenação episcopal.
No começo, o arcebispo de Canterbury expiará a sua coragem em
opor-se ao poder usurpador, ficando seis meses exilado.
Obrigado a fugir da Inglaterra, o sucessor de Santo Anselmo de
Cantuária desembarcou, após difícil travessia, a 2 de novembro de 1170, pouco
antes do pôr-do-sol, nas praias do Boulonnais, a cerca de cinco quilómetros de
Gravelines, para de lá, dirigir-se, imediatamente, a Soissons . Depois dali ter
recebido a hospitalidade do rei da França que nele venerava um bispo perseguido
injustamente, apressou-se a visitar o papa Alexandre III em Sens, ele próprio
banido de Roma pelo imperador Frederico “Barba ruiva”, da Alemanha. Entre os
dois ilustres exilados – um usando a coroa de espinhos do papado e representando
o direito contra a força, e o outro que logo usaria a auréola do martírio – a
entrevista foi tocante. Eles expuseram a tristeza mútua e fortaleceram-se na
provação, pela troca de pensamentos mais corajosos.
Alexandre III, depois de renovar a confiança em Tomás Becket,
implorou-lhe que fosse para a abadia cisterciense de Pontigny, que era filha de
Citeaux. E foi o que sucedeu. Lá viveu pacificamente sob o hábito monástico,
dividindo os seus dias entre oração e estudo.
Henrique II, informado da nova residência do Primaz, ameaçou
suprimir imediatamente nos seus Estados todos os conventos da Ordem, se os
monges não o afastassem, o mais rapidamente possível. E os monges cederam. O
próprio rei da França, temendo o seu rival inglês, desistiu da causa do Bispo
proscrito.
Como Tomás Becket foi perguntado onde esperava refugiar-se,
respondeu: “Ouvi que nas margens do Saône e até às terras da Provença, os
homens são livres... Irei para lá, e talvez vendo a minha aflição, as pessoas
tenham pena de mim».
Em Lyon, onde foi acolhido, aproximou-se do túmulo de Santo
Irineu, onde meditou sobre a ciência dos mártires. Em cartas admiráveis, que
são um monumento precioso para a história da época, expôs as suas cruéis
desventuras e verteu lágrimas pela sua Igreja enlutada.
Finalmente, Henrique II, temendo a excomunhão com que Roma o
ameaçava, consentiu numa reconciliação oficial, ocorrida em 1170, no dia em que
se comemorava a memória de Santa Maria Madalena. O rei prometeu, na presença de
um grande número de notáveis, devolver à Igreja da Inglaterra o uso das suas liberdades
e os seus direitos. Infelizmente, tratou-se de um perjúrio!
Ansioso em rever os seus fiéis, Tomás deixou a França. Assim
que o navio que o transportava tocou a costa britânica, uma multidão correu até
ele, ovacionando-o durante todo o caminho até à sua cidade episcopal. Nada mais
era preciso para renovar e envenenar o ódio do rei.
Certo dia, vários cavaleiros da sua comitiva ouviram Henrique
II pronunciar as seguintes palavras: "Quem me livrará deste homem?"
O projeto do crime foi imediatamente concebido, e os
assassinos chegaram a Cantuária no dia seguinte, 29 de dezembro, festa dos
Santos Inocentes. Era a hora da recitação das Vésperas. O Primaz acabara de
entrar na velha e imponente catedral para cantar o ofício com os monges, quando
os assassinos avançaram, espada na mão, perguntando: “Onde está o arcebispo?”
Este desceu imediatamente os degraus do presbitério e exclamou: "Aqui
estou. Eu sou o arcebispo! Se é a minha cabeça que estão à procura, ofereço-a.
Morro de bom grado pela paz e pela liberdade da Igreja”.
Sem mais delongas, um violento golpe de espada atingiu-o na cabeça, “no lugar da tonsura ou ‘coroa clerical’ e por onde escorreu os santos óleos, durante a sua sagração. Rapidamente, o Santo Bispo caiu e morreu como o bom Pastor no meio do seu rebanho". Nenhum traço de alteração apareceu nas suas feições", narra o seu último historiador. “Os olhos e lábios pareciam suavemente fechados, indicando uma paz celestial, e o sangue das suas feridas, coagulado, formou um círculo de rubis ao redor da sua cabeça».
Tal era a sua fama de santidade, que bastaram dois anos e dois
meses para que Tomás fosse canonizado, no dia 21 de fevereiro de 1173. Toda a
sua vida pode ser resumida nestas belas palavras, tiradas da Bula da sua
canonização: “Pro iustitia Dei et Eclesiae libertate decertavit. Lutou
pelos direitos de Deus e pela liberdade da Igreja”. Por outro lado, a mão da
Providência foi visivelmente pesada com a casa real da Inglaterra: não apenas
Henrique II foi odiosamente traído pelo seu próprio filho, mas logo veríamos a
dinastia Plantageneta extinta com a Guerra das Duas Rosas. É assim que a Igreja
triunfa!
A história de São Tomás Becket é parecida com a de muitas
figuras eclesiásticas. Foi a de Santo Ambrósio diante de Teodósio, a do Papa Pio
VII face a Napoleão I. O seu desenvolvimento constitui um dos episódios mais
gloriosos da luta entre o sacerdócio e o império.
Ainda hoje, como no passado, muitos cristãos, ao venerarem as
relíquias de São Tomás Becket, pedem-lhe coragem para defender a fé.
O'Connell, por exemplo, líder nacionalista irlandês da
primeira metade do século XIX, conhecido como o “Libertador” ou “Emancipador”,
ao visitar a Inglaterra e ao passar por Canterbury venerou "as lajes da incomparável
catedral, manchada com o sangue de um mártir, cujo relicário está lindamente
adornado de pedras preciosas e esmaltes".
Recordemos ainda a história do arcebispo Dom Georges Darboy que
recebeu no dia em que tomou posse da Catedral de Paris, em 1863, a cruz que São
Tomás de Cantuária carregava quando foi assassinado. "Aceitei o
presságio", disse. Pouco tempo
depois, no dia 4 de abril de 1871, durante a Comuna de Paris, foi encarcerado e
no dia 24 assassinado. A batina ensanguentada de Dom Darboy e a cruz de São
Tomás encontram-se depositadas no tesouro de Notre-Dame, retiradas durante o
incêndio de 15 de abril de 2019.
Que ensinamento podemos tirar da história de São Tomás Becket?
Em primeiro lugar, que a Igreja, cidadela sagrada da liberdade
de consciência, foi sempre perseguida, no passado, como hoje continua a ser,
fazendo com o sangue dos mártires seja derramado pela fidelidade aos
ensinamentos de Cristo, à sua causa e às suas leis.
Em segundo lugar, ela convida-nos a permanecer sempre filhos devotados da Igreja; a não nos calarmos quando pretenderem retirar os seus direitos; a ouvi-la quando fala, ensinando o Evangelho; e a apoiá-la quando é atacada pelos seus inimigos internos e externos.
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