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quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Tomás de Canterbury, mártir da separação da Igreja e do Estado


Tomás de Canterbury foi um dos homens que mais brilhantemente lutou pela Igreja, na Inglaterra do século XII.

Bossuet, o famoso orador francês, no panegírico que fez deste santo, glorificou o Primaz da Inglaterra chamando-o de “heroico defensor das liberdades cristãs”: "A Igreja", disse ele, "precisava de sangue para fortalecer a sua autoridade, como o Sangue divino tinha sido derramado para o estabelecimento da sua doutrina". Foi para o triunfo desta nobre causa que Tomás Becket dedicou todos os seus esforços, tornando-se num modelo de coragem inflexível, intrépido até a morte.

A situação da Igreja da Inglaterra na segunda metade do século XII era aproximadamente aquela que muitos dos nossos legisladores gostariam de impor: a sujeição do poder religioso ao poder. civil. O homem que, então, sonhava em oprimir o catolicismo na Grã-Bretanha ou, pelo menos, substituí-lo por uma Igreja nacional, chamava-se Henrique Plantagenet: um príncipe traiçoeiro e violento, no qual, como bem assertivamente expressou o Beato Frederico Ozanam, "o espírito da tirania elevou-se ao poder supremo, mas encontrou na pessoa de Tomás Becket uma incalculável força de oposição”.

Depois de ter sido o primeiro dos ministros e dignitários da coroa, Tomás Becket ocupou a cátedra primacial de Canterbury. No dia da sua coroação, o bispo fez-lhe a seguinte pergunta: "Resta-me pedir-lhe que escolha entre duas coisas que não me parecem compatíveis e que declare o que prefere: os favores e obséquios do rei desta terra, ou a do Rei dos céus. — “Com a ajuda de Deus”, respondeu Tomás, “a minha escolha já está feita. Jamais, por amor de um rei desta terra e para preservar os seus favores, renunciarei à graça do Rei do Céu”.

Na sua nova morada, o Primaz, segundo as palavras de Ozanam, “não conservou outra pompa senão a da esmola e da hospitalidade”. Ali, levava a vida laboriosa e mortificada de um monge beneditino. Prevendo que, como sucessor, Santo Anselmo, teria de continuar os mesmos combates contra os poderes do mundo, escolheu-o como modelo: não deveria, aliás, a seu exemplo, fazer prevalecer sobre as exigências régias o non possimus da fé?

No primeiro debate, a questão polémica entre Henrique II e Tomás Becket foi uma questão da jurisdição. Um cônego de Canterbury insultou oficiais reais. De acordo com a disciplina da época, o tribunal do arcebispo, – o único autorizado, em tal caso – condenou o culpado a açoitamento e suspensão temporária do ministério e benefícios inerentes ao seu cargo. Mas Henrique II, considerando esta sentença muito leve, quis encaminhá-la ao tribunal civil. Tomás protestou em nome do direito da imunidade que os membros da Igreja tinham. Este foi o início de uma luta que seria tão longa, quanto dolorosa.

Henrique II, para atingir os seus objetivos, resolveu então restabelecer os chamados “costumes reais”, que tornavam qualquer dignitário eclesiástico sujeito à autoridade secular. A partir de então, desapareceu a hierarquia católica, cujos membros se renovavam e sucediam-se por transmissão legítima. Da mesma forma, o Papa e os Bispos perderam a sua jurisdição e não tinham mais poder coercitivo ou penal sobre os dissidentes em assuntos religiosos. Os “costumes reais” eram, portanto, uma verdadeira carta de servidão. Ao separar a Igreja da Inglaterra da grande sociedade cristã, ela foi despojada da sua liberdade primitiva para rebaixá-la aos pés do trono como uma aristocracia vassala. Basicamente, o que Henrique Plantagenet buscava era destruir a imunidade eclesiástica, colocar as duas espadas em suas mãos e fazer da Igreja um instrumento do reinado. A esta pretensão régia, Tomás opôs-se fortemente e respondeu que observaria os “costumes do reino”, "menos a honra e os direitos da sua ordem, salvo ‘ordine suo’" segundo a fórmula utilizada na ordenação episcopal.

No começo, o arcebispo de Canterbury expiará a sua coragem em opor-se ao poder usurpador, ficando seis meses exilado.

Obrigado a fugir da Inglaterra, o sucessor de Santo Anselmo de Cantuária desembarcou, após difícil travessia, a 2 de novembro de 1170, pouco antes do pôr-do-sol, nas praias do Boulonnais, a cerca de cinco quilómetros de Gravelines, para de lá, dirigir-se, imediatamente, a Soissons . Depois dali ter recebido a hospitalidade do rei da França que nele venerava um bispo perseguido injustamente, apressou-se a visitar o papa Alexandre III em Sens, ele próprio banido de Roma pelo imperador Frederico “Barba ruiva”, da Alemanha. Entre os dois ilustres exilados ­– um usando a coroa de espinhos do papado e representando o direito contra a força, e o outro que logo usaria a auréola do martírio – a entrevista foi tocante. Eles expuseram a tristeza mútua e fortaleceram-se na provação, pela troca de pensamentos mais corajosos.

Alexandre III, depois de renovar a confiança em Tomás Becket, implorou-lhe que fosse para a abadia cisterciense de Pontigny, que era filha de Citeaux. E foi o que sucedeu. Lá viveu pacificamente sob o hábito monástico, dividindo os seus dias entre oração e estudo.

Henrique II, informado da nova residência do Primaz, ameaçou suprimir imediatamente nos seus Estados todos os conventos da Ordem, se os monges não o afastassem, o mais rapidamente possível. E os monges cederam. O próprio rei da França, temendo o seu rival inglês, desistiu da causa do Bispo proscrito.

Como Tomás Becket foi perguntado onde esperava refugiar-se, respondeu: “Ouvi que nas margens do Saône e até às terras da Provença, os homens são livres... Irei para lá, e talvez vendo a minha aflição, as pessoas tenham pena de mim».

Em Lyon, onde foi acolhido, aproximou-se do túmulo de Santo Irineu, onde meditou sobre a ciência dos mártires. Em cartas admiráveis, que são um monumento precioso para a história da época, expôs as suas cruéis desventuras e verteu lágrimas pela sua Igreja enlutada.

Finalmente, Henrique II, temendo a excomunhão com que Roma o ameaçava, consentiu numa reconciliação oficial, ocorrida em 1170, no dia em que se comemorava a memória de Santa Maria Madalena. O rei prometeu, na presença de um grande número de notáveis, devolver à Igreja da Inglaterra o uso das suas liberdades e os seus direitos. Infelizmente, tratou-se de um perjúrio!

Ansioso em rever os seus fiéis, Tomás deixou a França. Assim que o navio que o transportava tocou a costa britânica, uma multidão correu até ele, ovacionando-o durante todo o caminho até à sua cidade episcopal. Nada mais era preciso para renovar e envenenar o ódio do rei.

Certo dia, vários cavaleiros da sua comitiva ouviram Henrique II pronunciar as seguintes palavras: "Quem me livrará deste homem?"

O projeto do crime foi imediatamente concebido, e os assassinos chegaram a Cantuária no dia seguinte, 29 de dezembro, festa dos Santos Inocentes. Era a hora da recitação das Vésperas. O Primaz acabara de entrar na velha e imponente catedral para cantar o ofício com os monges, quando os assassinos avançaram, espada na mão, perguntando: “Onde está o arcebispo?” Este desceu imediatamente os degraus do presbitério e exclamou: "Aqui estou. Eu sou o arcebispo! Se é a minha cabeça que estão à procura, ofereço-a. Morro de bom grado pela paz e pela liberdade da Igreja”.


Sem mais delongas, um violento golpe de espada atingiu-o na cabeça, “no lugar da tonsura ou ‘coroa clerical’ e por onde escorreu os santos óleos, durante a sua sagração. Rapidamente, o Santo Bispo caiu e morreu como o bom Pastor no meio do seu rebanho". Nenhum traço de alteração apareceu nas suas feições", narra o seu último historiador. “Os olhos e lábios pareciam suavemente fechados, indicando uma paz celestial, e o sangue das suas feridas, coagulado, formou um círculo de rubis ao redor da sua cabeça».

Tal era a sua fama de santidade, que bastaram dois anos e dois meses para que Tomás fosse canonizado, no dia 21 de fevereiro de 1173. Toda a sua vida pode ser resumida nestas belas palavras, tiradas da Bula da sua canonização: “Pro iustitia Dei et Eclesiae libertate decertavit. Lutou pelos direitos de Deus e pela liberdade da Igreja”. Por outro lado, a mão da Providência foi visivelmente pesada com a casa real da Inglaterra: não apenas Henrique II foi odiosamente traído pelo seu próprio filho, mas logo veríamos a dinastia Plantageneta extinta com a Guerra das Duas Rosas. É assim que a Igreja triunfa!

A história de São Tomás Becket é parecida com a de muitas figuras eclesiásticas. Foi a de Santo Ambrósio diante de Teodósio, a do Papa Pio VII face a Napoleão I. O seu desenvolvimento constitui um dos episódios mais gloriosos da luta entre o sacerdócio e o império.

Ainda hoje, como no passado, muitos cristãos, ao venerarem as relíquias de São Tomás Becket, pedem-lhe coragem para defender a fé.

O'Connell, por exemplo, líder nacionalista irlandês da primeira metade do século XIX, conhecido como o “Libertador” ou “Emancipador”, ao visitar a Inglaterra e ao passar por Canterbury venerou "as lajes da incomparável catedral, manchada com o sangue de um mártir, cujo relicário está lindamente adornado de pedras preciosas e esmaltes".

Recordemos ainda a história do arcebispo Dom Georges Darboy que recebeu no dia em que tomou posse da Catedral de Paris, em 1863, a cruz que São Tomás de Cantuária carregava quando foi assassinado. "Aceitei o presságio", disse.  Pouco tempo depois, no dia 4 de abril de 1871, durante a Comuna de Paris, foi encarcerado e no dia 24 assassinado. A batina ensanguentada de Dom Darboy e a cruz de São Tomás encontram-se depositadas no tesouro de Notre-Dame, retiradas durante o incêndio de 15 de abril de 2019.

Que ensinamento podemos tirar da história de São Tomás Becket?

Em primeiro lugar, que a Igreja, cidadela sagrada da liberdade de consciência, foi sempre perseguida, no passado, como hoje continua a ser, fazendo com o sangue dos mártires seja derramado pela fidelidade aos ensinamentos de Cristo, à sua causa e às suas leis.

Em segundo lugar, ela convida-nos a permanecer sempre filhos devotados da Igreja; a não nos calarmos quando pretenderem retirar os seus direitos; a ouvi-la quando fala, ensinando o Evangelho; e a apoiá-la quando é atacada pelos seus inimigos internos e externos.