Desde o sábado, o mundo agita-se nos seus prazeres, enquanto
os próprios filhos da promessa entregam-se a alegrias inocentes.
A partir das 24 horas desta “Terça-feira gorda”, começará a Quarta-feira
de cinzas e a trombeta sagrada da qual o Profeta Joel fala soará (Jl 2,15). Ela
anunciará a abertura solene do jejum quaresmal, o tempo de expiação, a aproximação
cada vez mais iminente do Tríduo Pascal, dos grandes acontecimentos da nossa
salvação. Levantemo-nos e preparemo-nos para combater os combates do Senhor.
Nesta luta do espírito contra a carne, devemos estar armados.
E para tal, a Santa Igreja convoca-nos nas igrejas, para nos prepararmos aos
exercícios da milícia espiritual. Já São Paulo nos deu a conhecer em detalhe as
nossas defesas: Que a verdade seja a vossa cintura, a justiça a vossa couraça e
a docilidade ao Evangelho o vosso calçado, a vossa fé escudo, a esperança da
salvação o capacete que protegerá a vossa cabeça (cfr. Ef 2, 10-14). O Príncipe
dos Apóstolos adverte: "Cristo sofreu na sua carne; armai-vos com este
pensamento ". Estes ensinamentos apostólicos, a Igreja recorda-nos na Quarta-feira
de cinzas; mas acrescenta um outro não menos eloquente, forçando-nos a voltar
para o dia de prevaricação, que tornam necessários os combates que vamos livrar,
as expiações pelas quais é preciso passar.
Dois tipos de inimigos são desencadeados contra nós: as
paixões no nosso coração e os demónios; o orgulho fez toda esta desordem. O
homem recusou-se a obedecer a Deus; no entanto, Deus poupou-o, mas com a dura
condição de sofrer a morte. Ele disse: "Homem, tu és pó e ao pó retornarás".
Por que nos esquecemos deste aviso? Só ele teria sido suficiente para nos
proteger contra nós mesmos. Compenetrados com o nosso nada, nunca teríamos
ousado quebrar a lei de Deus. Se agora queremos perseverar no bem, onde a graça
do Senhor nos restaurou, humilhemo-nos; aceitemos a sentença e consideremos a
vida apenas como um caminho mais ou menos curto para o túmulo. Deste ponto de
vista, tudo se renova, tudo se ilumina. A imensa bondade de Deus, que se dignou
vincular o seu amor a seres devotados à morte, nos parece ainda mais admirável;
a nossa arrogância e a nossa ingratidão para com Aquele que afrontamos, durante
estes momentos da nossa existência, parece-nos cada vez mais digno de
arrependimento, e a reparação que podemos fazer, e que Deus possa aceitar, mais
legítima e mais salutar. (Dom Prosper Guéranger, Ano Litúrgico)
* * * * * * * *
Abaixo é transcrito o texto, não revisto pelo autor, de uma
conferência do Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, com pequenas adaptações.
A seriedade da Quaresma
e o horror ao pecado
A cerimónia da Quarta-feira de Cinzas, abrirá a Quaresma. E
qual será a atmosfera da cidade? A mesma de todos os outros dias do ano... E
não diferirá, sensivelmente, da miserável atmosfera dos dias de carnaval. Os
pecadores serão menos numerosos do que na Idade Média, na antiguidade, épocas
felizes em que essa cerimónia se foi constituindo até tomar o seu aspecto
definitivo? De modo nenhum. Pelo contrário! O número de pecadores cresceu
imensamente. Tornou-se a imensa maioria da população; a maioria ufana, a
maioria dominadora, a maioria depreciativa da população que olha com desdém,
que persegue o homem que vive segundo a lei de Deus.
Em tantas e tantíssimas igrejas, o que se passa? Qual é a
atmosfera? Como é tratado o pecado? Como é incriminado o pecado? O que se diz
nessas igrejas de modo a ajudar o pecador para que ele caia em si mesmo e se
arrependa do mal que ele fez? Nada!
Pelo contrário, tudo o que se passa parece intencionado na
direção de dar ao pecador a ideia de que ele pode continuar no pecado, porque este
não tem importância. Vê-se isso habitualmente aos domingos: a igreja está com
senhoras vestidas contra as leis do pudor, e de homens vestidos contra toda lei
da dignidade e da gravidade. Muitos deles são conhecidos e sabe-se como vivem.
Toca a campainha para Comunhão, e vai ser distribuído o Pão dos Anjos. A
maioria dos que se encontram na igreja aproximam-se para comungar. Serão Anjos?
É o caso de perguntar: a serem anjos, que anjos?
Comungam e voltam depois para casa, para reencetar a sua
vida de pecado. Este mundo, das enormes cidades babilónicas, está constituído
diretamente sobre a negação da gravidade do pecado, a negação do próprio
conceito de pecado.
Se fosse só a negação, ainda seria pouco; é a inversão. A
virtude é desprezada, é ridicularizada, é perseguida; o pecado não é apenas admitido,
ele é glorificado. Isso é que sucede ao pecado.
Nestas miseráveis condições, como se pode imaginar uma
população à qual seja adequada a cerimónia magnífica [da Quarta-feira de cinzas]?
Essa liturgia constituiu-se, provavelmente, de modo
definitivo, como grande parte da liturgia, na Idade Média. Alguma coisa ainda
se acrescentou nos primeiros séculos dos tempos modernos e depois quase nada se
acrescentou.
O centro da vida é a
Igreja
Como eram as cidades nesse tempo? Pensemos numa cidade
medieval. Pensemos nas pinturas das cidades medievais, nas iluminuras, nos
pergaminhos que nos representam estas cidades. Cidades pequeninas, com as ruas
estreitas, tendo que caber dentro de muralhas necessariamente circunscritas,
para defender os habitantes contra o ataque noturno. Em que as casas se
agrupavam umas às outras. Estas cidades pequenas vivem de uma vida, toda ela,
em torno da Igreja. A gente olha a pintura, e vê o principal edifício, uma seta
enorme: é uma torre, são duas torres, é o campanário da igreja. Em torno está a
cidade.
Às vezes vários campanários são várias igrejas, várias
abadias são vários conventos. Em torno desses conventos agrupa-se a população.
Os grandes edifícios não são os prédios de 80, de cento e tantos andares,
feitos em honra de Mamon (dinheiro),
para que o homem possa gozar depois os favores de Bios (vida). Não! São os prédios feitos para o culto de Deus. Tudo
se agrupa em torno deles.
O que se passa portanto dentro da igreja é fato central na
vida da cidade. E uma cerimónia religiosa não é uma coisa que se passa assim:
aqui tem uma cerimónia religiosa, ao lado tem um leilão; mais adiante tem um
pronto-socorro que está recebendo feridos; mais adiante tem uma casa imoral com
diversões péssimas. Não, não é isso não. O centro da vida é a igreja, a
paróquia. E o que se passa dentro da igreja - para a qual aflui toda a
população compacta - é o centro da vida da cidade. E o que se passa dentro da
igreja? São pecadores públicos – eu daqui a pouco explicarei o que é o pecador
público – são pecadores públicos que vem sabendo o que é a quarta-feira de
Cinzas, e que começou a Quaresma, a "Quadragésima", quer dizer os 40
dias de penitência e de jejum, e de arrependimento para preparar os homens para
participar com compunção das cerimónias que comemoram a morte sagrada de Nosso
Senhor Jesus Cristo e depois a sua gloriosa Ressurreição!
Convite aos pecadores
públicos
Então, nestes 40 dias de cerimónias, que lembram os 40 dias
de jejum de Nosso Senhor no deserto, são convidados a participar toda a
população e vão também os pecadores públicos.
O que a população pensa desses pecadores públicos? O que é o
pecador público? É o homem que comete pecados que são notórios diante da
cidade.
Um homem que matou alguém durante o ano, e que não se
arrependeu do seu pecado, não foi visto confessando-se, não foi visto recebendo
os sacramentos, e que foi visto - pelo contrário – locupletando-se com o
dinheiro da vítima que ele roubou. Depois, é outro homem que blasfemou em
público contra Deus e contra a Igreja, que foi repreendido por uma ordenação do
Bispo, que não se arrependeu e continua a blasfemar o ano inteiro. Ou então um
outro homem ou uma outra família que publicamente - à vista de todos - deixou
de comparecer às Missas. Aqueles que estão pública e notoriamente em estado de
pecado, estes são pecadores públicos.
O que pensa deles a opinião pública dessa cidade? Na Idade
Média, pensava-se o seguinte: são pecadores, e portanto são miseráveis! São
altamente censuráveis, e deve-se viver afastado deles. O homem reto não convive
com o pecador. E se tem que tratar com o pecador, será de modo distante, frio,
porque ele está em estado de pecado. Ele é inimigo de Deus, logo, é inimigo do género
humano! Ele é inimigo de cada homem, e como inimigo cada homem deve tratá-lo
assim, enquanto não fizer penitência.
Estes pecadores comparecem à cerimónia, porque todo mundo
vai. Mas estes mesmos pecadores, em via de regra, consideram que andam mal
pecando; reconhecem que eles andam mal. Pesa-lhes pecar, porém não lhes pesa
tanto ao ponto que abandonem o pecado. Mas, pesa-lhes pecar, e tem vergonha do
pecado que cometem.
Há outros pecadores que também se denunciam como tais nessas
cerimónias. São homens às vezes tidos como muito virtuosos, mas que aparecem de
repente e declaram de público: cometi um pecado! Como o virtuoso tal, a
virtuosa tal, está lá entre os pecadores, acusando-se de um pecado que cometeu.
E porque foi objeto de uma honraria à qual não tinha direito, agora está
arrependido ou arrependida, quer receber o desprezo que merecia e que roubou
pela sua hipocrisia, fingindo-se de boa pessoa quando não o era! Ele, ou ela,
está lá entre os pecadores públicos.
São só pecadores públicos que lá se acham? Quanto pecador
privado, que cometeu pecados durante o ano, que os confessou, que os confessou
bem, que os confessou mal, que de todo em todo não se confessou, cujo pecado
ninguém conhece, mas Deus sabe que ele é pecador, e que está ali também, na
hora em que começa a penitência, mas ao mesmo tempo o perdão para todos os
pecados.
Os senhores devem imaginar o estado de espírito de um destes,
quando é pecador público, que vai se declarar como tal. Estão andando pela rua,
junto com a população inocente. Estão vendo de longe a fachada imponente da
Igreja, com os seus santos, com os seus anjos, uma imagem do Crucificado ou de
Nosso Senhor Jesus Cristo em atitude de bênção; ou com a imagem da Virgem das
virgens, concebida sem pecado original, etc., os vitrais.
Os sinos estão tocando, eles olham para a fachada da igreja
que se ergue, imponente como é a severidade, e entretanto acolhedora, e que
lhes diz: "Vinde filhos! Vós pecastes, mas vinde para onde o perdão vos
vem. Começai por confessar-vos, começai por arrepender-vos".
Noção profunda da
gravidade do pecado
Entram, e os pecadores públicos podem ir para um determinado
lugar, aonde vão fazer penitência. Começa então a cerimónia. Mas sobre isso
preciso dizer mais uma palavra. É o seguinte: o homem da antiguidade, como o da
Idade Média, como depois todos os que tiveram verdadeira Fé, possuíam uma noção
profunda da gravidade do pecado.
Qual é o modo pelo qual, em duas palavras rápidas, podemos
avivar em nós esta noção que tantas e tantas circunstâncias desbotam
continuamente em nós? Qual é a gravidade do pecado?
Para compreendermos isso, farei uma pergunta estranha. O que
os senhores dizem de um homem ao qual se afirme o seguinte: "Você é um
tipo leviano, que não se toma a sério a si próprio". Diz-se uma coisa tal
que a resposta normal é uma bofetada! Porque se um homem não se toma a sério a
si próprio, ele não é nada, não vale nada. O próprio do homem é tomar-se a
sério a si próprio. O primeiro passo para ser alguma coisa, é tomar-se a sério
a si mesmo.
Daí figurar como asnática - se não fosse blasfema - a
seguinte pergunta: Deus se toma a sério a Si próprio? Deus evidentemente Se
toma infinitamente a sério, porque em Deus tudo é infinito. E se Ele Se ama
infinitamente a Si próprio, também Se toma infinitamente a sério a Si próprio.
E o resultado é que quando Ele diz aos homens: "Tal
atitude é pecado, e praticando-a tu rompes Comigo, tu te tornas meu inimigo, e
eu Me torno teu inimigo!" O resultado é que Ele toma isso infinitamente a
sério!
Pois então Ele diz uma coisa e isso não produz efeito? Ele
proclama uma inimizade, e essa inimizade não é autêntica? Ele é um moleirão que
acha - no fundo - que não tem importância o outro Lhe ter escarrado no rosto
(se se pudesse dizer isso) por meio do pecado que cometeu? Então, quem é Deus?!
Se Deus não é sério, é o caso de perguntar: Existe Deus?
Tudo é imensamente
sério na presença de Deus
Deus se toma a Si próprio infinitamente a sério. E é com
essa seriedade que Ele acompanha as ações dos homens. É com essa seriedade
infinita - irradiação ou lumen de Sua própria Sabedoria, elemento constitutivo
de Sua própria Sabedoria e de Sua Santidade - que Ele está nos contemplando
neste auditório, a mim que vos fala, e a vós que me ouvis! E que Ele está olhando,
a ver com que seriedade eu estou falando e com que seriedade os senhores estão
me ouvindo.
Tudo é imensamente sério na presença de Deus. E o pecado
portanto é profundamente sério. É execrável, é gravíssimo! Quem o comete rompe
com Deus, está na mais miserável das situações. Um ricaço que cometeu um só
pecado, esse ricaço está numa situação incomparavelmente pior do que Jó no seu
monturo. Porque ele tem tudo o que a terra dá, mas não tem nada do que o Céu
dá!
Mais ainda, mais ainda. O pecador deve saber que ele pode
ser punido por Deus de uma hora para outra, com penas nesta vida, e que
desgraças inopinadas podem desabar sobre si sucessivamente. É alguém de sua
família que morre; é um património seu que desaparece; é uma calúnia que o
agarra e que o acompanha como um vampiro até o momento da sua morte. É qualquer
outra desgraça que lhe pode acontecer: uma doença, de um momento para outro,
virá para punir nesta terra - tantas vezes - os pecados que ele cometeu.
Purgatório ou inferno
Como tudo isso é trágico! Que bagatela! Que insignificância
em confronto com a pior das punições: o inferno!
Uma mentira, um pecado leve: o indivíduo comete, morre logo
depois. Ele vai para o purgatório onde, conforme as circunstâncias, poderá
ficar 100 anos queimando. A expressão 100 anos é antropomórfica, pois no
purgatório não há tempo. Mas devemos entender que equivale a 100 anos de
penitência na terra. Os senhores já pensaram o que são 100 anos de penitência?
Isso pode acontecer com uma alma que vai para o purgatório, de um momento para
outro.
E o inferno? As trevas exteriores, eternas, onde o fogo
queima e não ilumina, onde os piores tormentos atazanam continuamente a
criatura, e ela sabe que para si não existe mais remédio, está tudo perdido!
Nada é mais nada.
Então o pecador tem a noção viva do mal que praticou, de que
não deveria ofender a Deus, porque Deus é infinitamente Santo, Verdadeiro, Bom,
tem o direito de não ser ofendido por nós; porque Deus é infinitamente Justo, e
descarrega a sua cólera em certo momento sobre o pecador! E o pecador teme, e
por causa disso está ele na igreja, e pede perdão, quer fazer penitência.
Tu, filho meu, mau, sê bom!
O que é essa penitência, o que é esse perdão? São coisas
distintas. Em primeiro lugar ele deve reconhecer todo o mal que fez. A Igreja
não pratica confissão pública. O fiel não vai dizer diante dos outros o mal que
praticou. Mas a Igreja o estimula a que tenha noção da gravidade do seu pecado.
E isto, nós veremos repetido nesses salmos, de um modo verdadeiramente
magnífico. Salmos ditados pelo Espírito Santo. É Deus tão insondavelmente bom
que Ele cria o homem e dá-lhe a glória de ser criado em estado de prova, de
maneira que o homem possa adquirir méritos e por estes ser premiado. O homem
usa mal essa prova, e peca. Deus, em lugar de o exterminar logo,
"cochicha" em seu ouvido aquilo que deveria considerar para medir o
mal que praticou. E lhe ensina como pedir perdão!
É como um juiz que recebe o réu, com uma majestade infinita,
com aparato de força e de severidade tremendos, mas ao mesmo tempo manda alguém
entregar ao réu um bilhete que diz: "Se pedires ao juiz assim na
sinceridade de tua alma, o juiz manda-te este recado: ele te atenderá!" E
o réu caminha para Deus, para Deus Juiz, com uma oração ditada por Deus
Juiz!...
Quer dizer, maior misericórdia não se pode imaginar. Deus
fala por meio dos profetas, dos homens inspirados do Antigo Testamento, aos que
dEle receberam Seus ensinamentos no Novo Testamento, Ele dá palavras por onde o
homem reconhece o seu pecado, e por onde pede perdão.
Então, do fundo da igreja, arrastando-se, vem o mísero
cortejo dos pecadores oficiais: "Miserere mei Deus, secundum magnam
misericordiam tuam, et secundum multitudinem miserationem tuarum, dele
iniquitatem meam... "Tende compaixão de mim ó Deus, segundo a
Vossa grande misericórdia; e segundo a multitude de Vossas bondades, apagai a
minha falta. Porque eu conheço o mal que eu fiz, o meu pecado está de pé
continuamente contra mim…".
Mas ele reza pedindo perdão, por assim dizer, esmagado pela
grandeza do seu Juiz, e pela infâmia da sua culpa. Mas ao mesmo tempo alentado
pela promessa do Juiz, e pela oração que o Juiz lhe ensinou. "Reze assim!
Meu filho, sinta isto, que Eu me tornarei teu amigo!"
Julgo que os senhores sentem aí o equilíbrio magnífico que
há na atitude de Deus. Próprio a esmagar, e de vez em quando esmaga! Mas que
preferiria não esmagar. E que diz ao homem, seu inimigo: "Tu, filho meu,
mau, sê bom. Aqui estão as palavras que deves dizer. A Minha graça opera na tua
alma, dize ´sim`, e tu te tornarás mais alvo do que a neve!"
Senhor, perdoai-me!
Mas isso não cabe numa mera jaculatória. Os senhores vêem
que o pecador pede muitas vezes, com muitas palavras, com muitas fórmulas
diferentes. Ele pede, pede, pede o que Deus lhe ensinou; as disposições de alma
pelas quais pode obter perdão, e lhe ensinou as palavras pelas quais pode
enunciar tais disposições de alma do modo próprio, correto, belíssimo, de
maneira a obter o agrado de Deus. Mas por que Deus não concede logo?
Ele deixa a alma na dúvida. Deus perdoou ou não perdoou? Ele
pede de novo, ele pede de novo. Ele argumenta com Deus, pela bondade de Deus, e
acaba argumentando com a glória de Deus: "Meu Deus, é da Vossa glória,
perdoai-me!" Como quem diz: "Em mim nada há que mereça o Vosso
perdão. Mas como será belo para Vós que me perdoeis. Por mim eu não mereço.
Mas, Senhor, Vós amais a Vossa glória, e por amor a Ela eu Vos peço: dai-me
aquilo que por amor a mim eu não mereço que Vós me concedeis. Senhor
perdoai-me!"
Os senhores compreendem então cada uma dessas palavras como
vem adequada, e preparando o espírito do homem ao mesmo tempo para uma profunda
compenetração de seu pecado, mas também para uma confiança enorme de que Deus o
perdoará. Os primeiros salmos não falam tão diretamente de confiança. Tem-se a
impressão de que o sol da confiança vai se levantando à medida que os salmos se
sucedem. E a última palavra é uma explosão de confiança: "Vós me
salvareis, ó Deus!" É que a graça falou no interior da alma dele e acabou
lhe dando certeza de que foi salvo. Então ele canta de alegria: “eu estou
salvo”!
Não facilite, a morte
ronda em torno de ti!
Mas, que alegria maravilhosa! É o começo da Quaresma. Porque
ele está salvo, ele quer fazer penitência; porque está salvo, quer sofrer para
expiar o pecado que cometeu. E por isso ele se aproxima do padre, e curvado,
genuflexo diante do sacerdote, este lhe coloca cinzas sobre a testa, faz uma cruz
e diz: "Lembra-te homem que tu és pó, e que voltarás a ser pó". Quer
dizer: cuidado! Não facilite, a morte ronda em terno de ti! Deus é
infinitamente bom, é verdade; Ele é infinitamente justo também. Abra os olhos,
vá e faça penitência.
E a penitência como é? É jejuar, é para alguns passar a pão
e água, fazer também coisas duras. E aí os senhores vêem a índole da Igreja.
Uma das primeiras cerimónias que está mencionada aqui é a bênção dos cilícios.
Como eram os cilícios? O mais das vezes eram cinturas todas com pequenos
ganchos de ferro, que arranhavam a carne de fato, e que a pessoa usava, por
exemplo, durante a Quaresma — alguns santos a vida inteira — usavam em torno do
tronco, sangrando, sangrando continuamente.
Vejam agora a atitude da Igreja, no fundo, como quem diz:
penitencia-te até ao sangue... mas tu és meu filho. Vem cá, o instrumento da
tua tortura, eu vou deitar sobre ele a minha bênção!
O homem não foi feito
para se entusiasmar apenas com a misericórdia, mas também com a justiça de Deus
Os senhores fizeram como fazem todos os auditórios: quando
se fala da misericórdia, há exclamações de encantamento! Eu quisera que quando
se falasse da justiça, os senhores tivessem exclamações não menores. O homem
não foi feito para se entusiasmar apenas diante da misericórdia de Deus. O
homem foi feito para se entusiasmar também diante da justiça de Deus. O homem
deve achar bela a justiça. Ele deve ficar penetrado de admiração pela justiça.
Transido de admiração pela justiça. E isso lhe deve dar entusiasmo.
Por que? Porque quando o pecador compreende o mal de seu
pecado, e vê quanto Deus odeia o seu pecado, percebe a pureza divina. E
percebendo a pureza infinita de Deus, como pode ele não se entusiasmar?! Aquele
que tem horror ao pecado, ama a virtude que o pecado nega, que o pecado
transgride. E, portanto, é preciso, é gravemente necessário, que nós nos
entusiasmemos diante da severidade de Deus.
"Ó meu Senhor, como Vós odiais meus pecados! Eu Vos
peço: dai-me uma centelha de Vosso ódio sagrado aos meus próprios
pecados!" Que bela oração! Quão pouca gente a faz. Logo depois, é claro,
nós devemos pedir a misericórdia. Quem pode subsistir sem a misericórdia de
Deus? Não é pensável! Mas amemos a Sua justiça também.
Maria, Mãe de
Misericórdia
Nós vamos transpor na quarta-feira, se Deus quiser, os
umbrais da Quaresma. Vamos entrar na Quaresma. Devemos pedir o horror aos
nossos pecados; devemos pedir o amor reverente e transido a essa execração que
Deus tem aos nossos pecados. Devemos pedir a Deus o ódio ao nosso pecado, como
ao pecado dos outros. Devemos pedir a Deus que nos conceda a misericórdia, sem
a qual nós na presença dEle não somos capazes de nos manter.
Eu acabo de falar da palavra "misericórdia". É
porque eu quero preparar o fecho do que estou dizendo, e este possui um nome:
Maria!
Tudo quanto eu disse até agora, o homem não obtém se Maria
Santíssima não pedir por ele. Nada. Ela é a Medianeira necessária. Por vontade
de Deus, Ela é a Medianeira necessária de todas as nossas orações até Ele, e de
todas as graças que baixam dEle para nós. Se nós temos arrependimento de nossos
pecados, foi Ela que pediu, foi assim que nós obtivemos.
Se temos vontade de fazer penitência, foi Ela que pediu. Se
tivermos força para executar a penitência que devemos, é Ela que nos pedirá
essa força. E no fim, feita a penitência, e sentindo-nos reconciliados com
Deus, Ela é o sorriso de Deus para nós. De maneira que, como filhos de Nossa
Senhora que somos, devemos terminar essa reflexão com a Salve Rainha, Mãe de
Misericórdia!
(Plinio Corrêa de Oliveira, Santo do Dia, 2 de março de 1984)
(Plinio Corrêa de Oliveira, Santo do Dia, 2 de março de 1984)
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