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| O túmulo (gisante) de Luís XII e de sua esposa Ana  de Bretanha, na igreja de Saint Denis (Paris). Pintura de Emil Pierre Joseph de Cauwer (1867)  | 
O dia de       Finados representa para nós muito e até muitíssimo. Porque diretamente é o       dia no qual rezamos por todos os fiéis e por todas as almas que morreram e       que porventura estejam no Purgatório. Mas é também o dia em que a Igreja –        com aquele tato que Lhe é próprio e que é qualquer coisa de absolutamente       inconfundível – nos recorda a realidade da morte.
Ela como       que abre um precipício debaixo de nossos pés e nos faz ver uma multidão de       almas que se encontram em estado de pena, de sofrimento, de um lado. E, de       outro, a miséria da morte, a destruição da morte, a aniquilação da morte,       a miséria da alma quando ela não vai diretamente para o Céu.
Seria       bonito ver na liturgia de Finados – eu não sei se ela sofreu alguma       reforma – as frases       de Jó, as lamentações que lembram o homem levado até às beiras da loucura       e que depois entra pelas fauces da morte adentro, inteiramente isolado, em       que os ossos se calcificaram, a carne virou pó, um imenso pranto inunda       sua alma separada do corpo, e aquela miséria daquela criatura pecadora       posta numa atmosfera de punição, e esperando a misericórdia de Deus e a       misericórdia dos vivos. Isso faz muito bem.
De quando       em quando nós devemos meditar sobre a morte, para compreendermos o que há       de profundamente real naquela advertência que o sacerdote faz na       Quarta-feira de Cinzas: "Lembra-te, homem, de que és pó e que pó voltarás       a ser". Nós não somos outra coisa a não ser pó e voltaremos a ser       pó.
E isso       nos faz dar uma dimensão exata a todas as coisas dessa vida. Nós todos       aqui, nessa sala, nesse momento, podemos estar movidos por desejos tão       vários. Mas o que são esses desejos, quando a gente calcula o que a gente       é? É uma coisa tremenda! 
"Quando eu passo pelo       cemitério, eu vejo ali o meu destino" 
Outro dia       estive lendo uma notícia em um volumoso periódico a respeito de morte       súbita, e o Dr. “X” me disse que a coisa é assim mesmo como narrava essa       matéria jornalística. Eu tinha sempre a idéia de que a gente antes de       morrer precisava adoecer, ao menos de morte natural, não digo com um       acidente qualquer, por exemplo, um caminhão que nos colhe. E que,       portanto, enquanto a gente se sente bem, teria uma relativa segurança de       que não vai morrer. Mas não é verdade. Pode-se estar passando       perfeitamente bem, de repente forma-se no calcanhar ou na ponta do dedo,       por exemplo, um coágulo determinado por razões que não se sabe quais são,       e lá vai uma embolia... que se dirige ao cérebro e determina um efeito       "X", cujo fruto mais palpável é a morte. E isso pode dar-se com qualquer       um de nós, a qualquer momento.
No       momento em que eu estou falando aos Srs., é possível que esteja um coágulo       a um centésimo de segundo do meu cérebro e que eu não acabe de pronunciar       essa frase e caia morto.
Os Srs.       até diriam muito erradamente, que eu estava prevendo minha morte quando eu       falei, mas não é verdade. Eu estou prevendo senão a possibilidade de minha       morte. E pode ser, entretanto, que eu não termine a frase.
Se eu sou       algo de tão inconsistente, se um coágulo partido de meu calcanhar liquida       com todos os meus desejos, todas as minha aspirações, todos os movimentos       que eu tenha em relação às coisas dessa vida, se sou uma coisa tão, tão       débil que, em ultima análise, eu sei que morrerei, quando eu passo pelo       cemitério, eu vejo ali o meu destino que está fixado: é virar pó, ser       corroído pelos vermes! É uma coisa horrorosa o modo pelo qual se dá a       corrosão dos vermes. Dr. “Y”, uma ocasião, me deu umas informações a       respeito de como isso se passava, descrita nas aulas de medicina legal que       teve: é uma coisa tremenda. Porque primeiro o corpo começa a tomar, muito       frequentemente, um estado de sebo, de manteiga ou de gelatina e depois       apodrece...
Olhem-se       no espelho, pensem nos seus traços definidos e pensem quando tudo aquilo       tiver um caráter repugnante e gelatinoso, virando a queijo mau cheiroso;       quando o nariz, quando isso, quando aquilo tudo estiver horroroso...        
A meditação sobre a morte é       benfazeja para criar desapegos, humilhar orgulhos e fazer compreender que       podemos cair de um momento para o outro no julgamento de Deus
E vem a       figura de vermes que devoram aqueles ossos... Assim como, por exemplo, na       Revolução Francesa os terroristas devoraram os girondinos, que afinal,       eram menos indecentes do que eles.
Os       girondinos devoraram a velha monarquia francesa, já em estado de queijo,       de sebo e de liquidação. Assim é a marcha inexorável das       coisas...
Isso       (decomposto e tragado pela morte) vou ser eu! É essa carne aqui, esses       ossos cujo impacto eu estou sentindo vão ficar reduzidos a esqueleto; eu       vou ficar esticado numa sepultura e não vou ser mais nada. Muita gente       passará perto e dirá: "Que alívio!..." Um ou outro passará perto e dirá:       "Coitado!" Algum se lembrará de rezar por mim. Eu peço que rezem bem... E       isso é o desfecho de minha vida. Em certo momento estarei reduzido a ossos       que causam horror a todo o mundo. 
Eu       pergunto: não é boa essa meditação para refrigerar muitos ardores, para       criar muitos desapegos, para humilhar muito orgulho e para fazer       compreender que nós podemos cair de um momento para o outro no julgamento       de Deus vivo? Mas de um momento para o outro! Porque quem de nós sabe se       vai chegar em casa hoje? Quem de nós sabe se daqui a uma hora não estará       sendo julgado por Deus? E que não estará sendo queimado pelas chamas do       Purgatório?
Ora, sem       essas incertezas a vida não tem grandeza nenhuma. Nada é belo, nada na       vida é atraente, a não ser com um pano mortuário no fundo. Porque é só       pelo contraste que o homem conhece as coisas dessa vida. E é só pelo       contraste com essa miséria fundamental é que a gente compreende como tudo       quanto nós queremos aqui é pouco, e a grandeza de um outro destino que nos       espera. 
A “civilização” moderna tem       pavor do luto 
E por       isso também que os liturgicistas querem acabar com tudo quanto na liturgia       representa a morte. Eu já vi um deles advogar paramentos brancos para essa       ocasião dizendo: "É um dia de alegria! O sujeito vai para o Céu. Toda a       família deve estar satisfeita!..."
Eu não       quis dizer a ele, mas a vontade que tive foi de lhe dizer: "Seu cândido,       eu conheço bem seu carnaval. O que você quer é não olhar o pano preto,       porque você tem medo que o pano preto caminhe junto a você e te envolva       como um sudário. Você tem medo de pensar na noite escura para onde todos       nós vamos. Mas você, na realidade, está com medo, porque sua consciência       está intranquila. Aqui é que está a verdade e é por isso que você não quer       o preto."
Então,       como a civilização moderna tem pavor do luto... 
Eu       conheci o tempo em que umas viúvas retardatárias – não sei no Chile ou no       Uruguai como era o luto – que usavam um luto que era todo de preto, de       alto a baixo, um véu preto atrás, outro véu preto na frente, naturalmente       transparente, diáfano, para a viúva poder ver por onde caminhava. E quando       elas iam fazer visita para agradecer os pêsames, iam com tudo aquilo e       levantavam o véu para conversar. Depois, abaixavam-no. Depois ia para       outra visita...
Havia       também o que se chamava “luto aliviado”, ou seja o luto diminuído em       função do grau de parentesco com a pessoa falecida e do tempo transcorrido       de sua morte: se esposo, pai, mãe, etc. Era, então, de branco e preto. E,       finalmente, ao cabo de um ano ou dois anos se suprimia completamente o       luto. 
A Revolução tem pavor da       morte – Nós devemos encará-la com serenidade, com grandeza, inclusive no       que ela tem de aflitivo e de tremendo 
Quanta       gente diz: "Ah, isso é formalidade pura, eu não gosto disso!" Não é       verdade. Você tem medo da morte e tem um tal pânico que tem medo até da       cor preta. E tem medo de se sepultar naqueles lutos. No fundo, você tem       medo de morrer. E é por causa disso que você não quer o luto.
É o pavor       da morte que tem a Revolução. E é claro. Ela tem todas as razões de ter       medo da morte...
Nós       devemos encarar a morte com serenidade, com grandeza, inclusive no que ela       tem de aflitivo, de tremendo.
Há uma       miséria grandiosa na morte, onde a gente poderia dizer o seguinte: o ser       inteligente, capaz de morrer, capaz de passar tão grande catástrofe, tem       uma tal capacidade de grandeza que certamente uma outra vida e um outro       destino o espera. E nisso então compreender bem toda a nossa       grandeza.
Eu digo       mais: para minha caríssima geração nova – já não digo da minha geração que       já está rifada – não é só a consideração da morte que faz bem: a visão da       dor também é benfazeja. Às vezes tenho vontade de fazer papel de turista,       levando alguns dos Srs. para um hospital do câncer, para uma Santa Casa,       para hospitais onde tem, como aqui na Santa Casa, gente que sofre de       úlcera exposta assim na mão, no rosto, num membro, para nós compreendermos       qual é o papel da dor na vida, o que é o papel do sofrimento na vida. E       compreendermos que não se pode levar uma vidinha de boneca de louça,       ignorando essas coisas e não tendo coragem de as ver de frente.        
"Nem Luís XIV em todo o seu       esplendor teve a majestade de Jó no seu monturo" 
Eu já       tive vontade também, mas acho a coisa aventurosa, de um dia fazer       comentários de alguns trechos do livro de Jó, o qual tem umas descrições       as mais faustosas da dor. Eu nunca vi tanta majestade na dor e nunca vi       tanta majestade fora da dor, como no livro de Jó.
Se é       verdade que Nosso Senhor disse que Salomão, em toda a sua glória, não se       vestiu como um lírio do campo – sentença admirável e inteiramente       verdadeira! – eu acho que se pode dizer que Luís XIV em todo o seu       esplendor não teve a majestade de Jó no seu monturo!
Representação de Jó
As       lamentações de Jó são das coisas mais majestosas que tenha havido na       terra. E aí a gente compreende a majestade da tragédia, a majestade da       tragédia grossa, que chega aos últimos limites, a grandeza que o homem tem       conservando a serenidade sapiencialmente diante dessa tragédia.
Sei que       as lamentações de Jó são de um gênero de literatura muito singular e muito       pouco apreciado. Mas foi inspirado pelo Espírito Santo. É um excelente       Autor, eu garanto aos Srs... 
Rezar pelas almas do Purgatório pelas quais       ninguém inclui em suas preces 
Tudo isso       a propósito do dia dos mortos. É a lição que os mortos nos dão e que a       morte nos dá. É uma lição de profundidade, uma lição de força de alma, uma       lição de coragem, uma lição de grandeza, que é incomparável.
Antigamente       havia reportagens sobre a morte até em jornalecos ordinários, em que o       cronista, quando descrevia alguém que morreu, para dizer que tinha       falecido, dizia: "Por fim,  expirou e a majestade da morte revestiu       os seus traços". Era uma ideia muito bonita.
Há uma       majestade da morte e, sobretudo, de certos mortos que tomam uma majestade       que é a própria imagem da majestade de Deus puniente, de Deus enquanto       castiga, é a majestade do trovão, a majestade do relâmpago, a majestade do       terremoto, é a majestade dos cataclismos; é algo que é preciso conhecer e       amar. Porque quem não conhece isso, não ama isso, e não é capaz de ver       Deus inteiro: na sua afabilidade sem fim, na sua meiguice sem fim e na       grandeza de sua justiça também sem fim.
Todas       essas são meditações úteis para se fazer a respeito do dia de       finados.
Vamos       rezar para os mortos numa proposta a eles, que eu faço assim: que as       orações dessa noite sejam – desde que Nossa Senhora, que é detentora de       todo o valor de nossas orações nisso consinta – sejam para as almas do       purgatório que mais estejam abandonadas e para as quais ninguém reza;       almas talvez que tenham mil anos para cumprir ainda, no fogo, etc., e       ninguém reza por elas. Mas com uma condição: que elas nos obtenham a       compreensão, o amor e o entusiasmo por toda as sombras com que a morte       enriquece a estética do Universo e os panoramas verdadeiros da vida       humana (Plinio Correa de Oliveira).














