Não obstante ter sido o monarca português de maior
longevidade (morreu aos 76 anos), Afonso Henriques não teve, segundo a
tradição, um prometedor começo de vida. Com efeito o príncipe veio ao mundo com
um grande defeito nas pernas, aparentemente incurável ou, nas palavras de
Duarte Galvão na sua "Crónica de D. Afonso Henriques", a criança
nasceu "com tal aleijão (...) tolhido de maneira que todos julgavam que
nunca mais se curaria, nem seria homem".
Por insistência de Egas Moniz, a educação da
"criatura" foi-lhe entregue, cumprindo-se, assim, a promessa do Conde
D. Henrique de lhe confiar como pupilo o seu primeiro filho varão.
Ainda segundo a lenda, Egas Moniz terá procurado por
todos os meios a cura da criança. Mas só quando o pequeno Afonso tinha quatro
anos as suas canseiras teriam fim: uma visão da Virgem, durante o sono,
indicou-lhe que encontraria a cura numa sua imagem existente nas ruínas de uma
velha igreja abandonada nas margens altas do Douro. As buscas que então inicia
cedo dariam resultado já que, pouco tempo depois, encontra tal imagem e tal
local em Cárquere. Cumprindo as indicações que lhe haviam sido transmitidas no
sono, Egas Moniz colocou o príncipe no altar e aí faz uma noite de vigília. Na
manhã seguinte o jovem Afonso estava curado.
É na sequência deste famoso milagre de Cárquere que,
alguns anos depois, Egas Moniz, segundo uns, ou o Conde D. Henrique ou mesmo o
próprio Afonso Henriques, segundo outros, manda construir a igreja e o mosteiro
cuja fundação parece, de facto, relacionar-se com a construção do templo.
Sabe-se que aí se estabeleceram cónegos regrantes de Sto. Agostinho e, em
meados do século XVI, Jesuítas. Com a expulsão destes pelo Marquês de Pombal, o
Mosteiro foi abandonado a partir de 1775, dele restando hoje apenas ruínas.
Quanto à igreja, nela são evidentes diferentes estilos
e épocas de construção. Se a torre ameada é tipicamente românica, datando dos
finais do século XII, já a capela-mor, gótica, é mais tardia cerca de um
século. Por seu lado o corpo da igreja, tal como o observamos na actualidade,
de estilo manuelino, datará dos princípios do século XVI. Curiosamente, a parte
mais antiga de todo o conjunto monumental situa-se no exterior, ao lado da
sacristia. Referimo-nos à Capela Funerária dos Condes de Resende, datada do
século XII onde, entre outros, salientamos a janela românica e os quatro
sarcófagos, cujas tampas apresentam o brasão dos Resende.
Voltemos ao interior. Duas imagens devem despertar a
atenção do visitante. A minúscula representação em marfim de Nossa Senhora de
Cárquere, de apenas 29 mm
de altura e de atribuição cronológica muito discutível, mas que segundo a
tradição foi a que Egas Moniz encontrou entre as ruínas da igreja preexistente;
e uma imagem da Senhora-a-Branca, datada do século XIV e feita em pedra de
Ançã. Esta última está na base de uma tradição que durante séculos aqui fez
acorrer imensas mulheres que, para evitar que lhes secasse o leite com que amamentavam
os filhos, raspavam da pedra da imagem pó para posteriormente misturar na água
que bebiam.
Ainda no interior da igreja, junto das escadas que dão
acesso ao coro, o visitante pode contemplar numa parede a pele do enorme sardão
que, segundo a lenda, surgiu a uma mulher que se dirigia ao mosteiro com um
cesto de novelos à cabeça. Face à evidência do bicho a querer comer e ao filho
que a acompanhava, implorou o auxílio de Nossa Senhora de Cárquere que, de
imediato, lhe terá aparecido e indicado que atirasse os novelos ao lagarto,
ficando, no entanto, com todas as pontas dos fios nas mãos. Ora, depois de o
animal os ter engolido, a mulher puxou todos os fios em simultâneo provocando a
morte do sardão por "engasgamento".
Uma visão mais atenta do visitante revelará, no
entanto, que não estamos perante a pele de um gigantesco sardão, mas antes de
um pequeno jacaré ou crocodilo, possivelmente oferta de algum devoto de Nossa
Senhora de Cárquere que a ela terá recorrido numa situação de aflição em terras
distantes e provavelmente enfrentando o referido animal.
Suzana
Faro e Joel Cleto