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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Espírito de Quaresma

 
De todos os tempos litúrgicos nenhum há, certamente, mais cheio de ensinamentos, mais rico de admiráveis fórmulas do que os quarenta dias de preparação para as solenidades pascais, que constituem a Quaresma – tempo de penitência, em que as almas se devem purificar para compartilhar das glórias da Ressurreição, já que se animam com Jesus por meio dos sacrifícios do jejum e mais práticas da ascese cristã.

A Quaresma era o tempo da última preparação dos catecúmenos para o Batismo, que lhes era administrado na noite de Sábado Santo para o Domingo de Páscoa. A exemplo dos 40 dias passados por Jesus no deserto para se preparar para a sua missão pública, os catecúmenos preparavam-se para o primeiro Sacramento com seis semanas de jejum e de oração.

Uniram-se-lhes mais tarde, nas intensas orações e nos jejuns, os penitentes públicos, que esperavam ser absolvidos na Quinta-feira Santa; mais tarde ainda, mas não antes do século IV, o jejum das seis semanas anteriores à Páscoa foi estendido a todos os fiéis. Mas como ao Domingo não se jejuava, havia apenas 36 dias de jejum, nos 42 dias que a Quaresma durava. Não faltavam os escrupulosos. Moisés, Elias, os habitantes de Níneve, Jesus Cristo, todos tinham jejuado 40 dias; eles também queriam passar 40 dias no jejum.

No século VII a Santa Igreja alargou a Quaresma mais quatro dias, começando-a, não já no sexto Domingo antes da Páscoa, mas na quarta-feira precedente.

Mas os 40 dias de jejum pareceram ainda pouco a muitos católicos piedosos dos primeiros séculos, especialmente aos anacoretas, que por isso mesmo prolongaram o jejum por 50, 60 e até 70 dias. Havia neste caso, além do jejum quaresmal, um jejum quinquagesimal, sexagesimal e septuagesimal.

Agora a Quaresma está reduzida aos seus antigos termos de 40 dias; e a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II suprimiu a lembrança do antigo jejum prolongado e dos três Domingos que precedem a quarta-feira de Cinzas e tinham o nome de Domingo da Quinquagésima, Sexagésima e Septuagésima, onde eram adotados os paramentos roxos.

A liturgia quaresmal é de penitência. Retiram-se as flores dos altares, os paramentos são roxos, e o acompanhamento musical da celebração, reduzido.

A recordação dos 40 dias que o Mestre passou no deserto penetra o espírito e a letra das fórmulas deste tempo e dá-lhes o caráter dominante e bem definido.

Esta lembrança de Jesus penitente determinou a escolha de tantas e preciosas orações que nos encantam e que a Santa Igreja nos propõe para meditação durante a Quaresma.

Os instantes pedidos do pecador para que se volte da sua iniquidade para o Senhor; as exortações às práticas penitenciais dirigidas às almas para que se purifiquem confiadas na misericórdia divina; as leituras, tão penetradas de doutrina, tiradas do Antigo e Novo Testamento; a escolha dos responsórios, antífonas e hinos, não visam outro fim, senão a uma ascese, a um trabalho mais intenso do cristão, cônscio do seu nada e da miséria a que o reduziram as suas faltas e, portanto, convicto da necessidade de regressar a Deus pelas árduas sendas da penitência.

O primeiro dia da Quaresma é a Quarta-feira de cinzas, assim chamada por causa de uma cerimónia simples, mas tocante. Na véspera queimam-se os ramos de oliveira benzidos no Domingo de Ramos do ano precedente, e juntam-se as cinzas. O sacerdote benze essas cinzas no Altar e depois deita-as sobre a cabeça dos fiéis, ou sobre a fronte, dizendo: “Lembra-te, homem, que és pó da terra e à terra hás-de voltar” (Gen 3, 19) ou “Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15). Bastaria esta cerimónia para nos dar a conhecer, desde o princípio, o espírito que nos há-de guiar, os sentimentos de que nos devemos imbuir.
Todavia, para bem compreendermos como com este espírito e com estes sentimentos se conformam certas leituras, responsórios e outros passos da Sagrada Escritura, reproduzidos na liturgia do tempo, devemos lembrar que dois outros factos e elementos principais inspiram e dominam a Quaresma.

Como acima referimos, a Quaresma er uma preparação dos catecúmenos para o batismo. Para este grande ato, durante 40 dias eram os catecúmenos preparados e expunha-se-lhes o Pai-Nosso, versículo a versículo: explicava-se-lhes o livro do Génesis, a história do mundo e do homem, a obra dos seis dias, e liam-se-lhes outros autores do Velho e Novo testamento, que lhes fizessem conhecer a fé.

A isto se devia a presença no lecionário antigo do milagre que Elias fez a favor do filho da viúva de Sarepta, mostrando como Deus envia o seu projeta não aos judeus, mas aos gentios, que Ele chama para a fé; de José, vendido pelos seus irmãos, imagem de Jesus a quem os seus compatriotas repelem e atraiçoam; vendido para o Egito, o filho de Jacob salva o país estranho, como Jesus, rejeitado pelos seus, se comunica em bênçãos aos gentios; é o filho do pai de família, repelido e desprezado pelos trabalhadores da vinha, símbolo do Salvador, que a Judeia renega, e se vê obrigado a levar os seus benefícios para fora da Sinagoga; é Jacob suplantando o seu irmão primogénito, Esaú, e figurando o povo gentio que é preferido ao judaico; e o pobre Naaman curado da lepra, depois de banhado nas águas salutares do Jordão, que lembra as águas batismais, onde vai ser purificado o catecúmeno; é a admirável liturgia que canta os júbilos do que sai puro e sem mancha do banho da graça, refletindo luz, alegria e santidade; são as duas mães diante de Salomão, recordando uma a Sinagoga e outra a Igreja, verdadeira mãe, toda trêmula de amor por seus filhos…!

O segundo fato que singularmente esclarece o estudo da liturgia quaresmal era que os cristãos, réus de faltas mais graves, tinham de se submeter às árduas e severas penitências, principalmente durante os quarenta dias que precediam a Páscoa.

A Igreja não esquecia as pobres almas, assim sob o rigor da disciplina: no princípio da Quaresma cobria-lhes a cabeça de cinza em sinal de luto e de penitência, recordando-lhes a miséria da vida e o pó de que tinham sido criados, ao qual haviam de voltar – prática que hoje se usa com todos os cristãos. Porém, para não lhes deprimir o espírito, sob um regime de austeridade, a Santa Igreja, como Mãe carinhosa, recorria solicitamente a apresentar as lições de caridade que o Mestre Divino nos legou no Santo Evangelho. Assim era a encantadora parábola que mostra o Bom Pastor todo cuidadoso para com a ovelha tresmalhada, trazendo-a aos ombros para o aprisco; a ressurreição do filho da viúva de Naim, a de Lázaro, que vêm simbolizar-nos o levantamento da morte do pecado para a vida sublime da graça divina. É a história da mulher adúltera conduzida aos pés do Mestre para se lhe cominar o duro castigo da Lei, símbolo das divinas misericórdias para com os infelizes que caíram no mal por fraqueza, mas sinceramente arrependidos.

E sempre a graça de Deus a ressuscitar para a verdadeira vida aquele que pelo pecado a perdera, é o Senhor atraindo pelos divinos laços de uma bondade sem limites, a alma que dele se afastou.
Tais eram os ensinamentos que podíamos haurir nos antigos e nos novos livros litúrgicos, neste tempo, tais são as lições que cada um dos cristãos pode aplicar a si mesmo.

A Santa Igreja conservou até hoje essas admiráveis expressões da piedade antiga principalmente para serem alimento espiritual dos fiéis em todos os séculos.

Ela quer que não nos esqueçamos de que somos pecadores, expostos constantemente às variadas ciladas dos inimigos e por isso têm para os cristãos de hoje, um interesse de atualidade de primeira ordem todas as lições litúrgicas que durante a Quaresma a Santa Igreja põe à nossa consideração quer na Santa Missa quer na Liturgia das Horas.

Embora nos possa parecer que essas lições só se referem aos catecúmenos e penitentes da antiga Igreja, elas dizem respeito a todos, pobres pecadores, que devemos trazer nos lábios os gritos de arrependimento, os apelos à divina clemência, os acentos de gratidão do pecador restituído à graça, que as fórmulas da liturgia deste tempo trazem de uma tão admirável maneira.

Devemos entrar na Santa Quaresma com a mesma convicção, com a mesma intenção da Igreja, refletida na liturgia. Purificação das manchas do pecado e desprendimento de todo o apego desordenado aos bens materiais, temporais e mundanos. Sacrifício de tudo o que pode impedir-nos de subir ao cimo da vida cristã. Renúncia que custará muito trabalho, lutas e sacrifícios. União ao Senhor na Sua vida de renúncia, de lutas e sofrimentos, convencido de que Ele, a Cabeça, vencerá também em nós, seus membros. Quanto mais união a Ele, tanto mais seguros estaremos para participar depois na Páscoa da Sua glorificação, da Sua nova vida.

Ressuscitados com Cristo, viveremos como homens novos servindo de fermento no levedamento da massa.

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