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domingo, 22 de setembro de 2019

A multidão, o linchamento e a execução sumária: o caso de Hautefaye


Napoleão III
Nos anais dos grandes processos do século XIX, “o caso de Hautefaye”, embora pouco conhecido do público, ocupa um lugar especial na memória dos juristas. Isto porque se tratou de um crime terrível, segundo o termo consagrado – que possui a particularidade de ter sido cometido, se acreditarmos nos acusados, por amor ao Segundo Império; e que foi julgado – há quase cento e cinquenta anos – pelos tribunais da República, tendo já Napoleão III sido afastado do poder após a capitulação de Sedan.


O frio entrava pela grande porta aberta ante uma aurora descolorida de fevereiro. Na soleira, a neve suja, pisada, criara uma poça barrenta. Esgotados pela espera e pela longa viagem que os trouxera, de furgão, de Périgueux até esta longínqua aldeia de Hautefaye, perdida nos confins do Périgord, do Limousin e de Charentes, os quatro condenados nada diziam. Desde as sete horas (era dia 6 de fevereiro de 1871, o processo tinha começado em agosto de 1870), duzentos homens de um regimento de infantaria de linha alternavam-se, formados em quadrado, com as armas prontas no meio da vila. No centro desse quadrilátero, diante do mercado, o cadafalso. Súbito, um ruído surdo sobressaltou os soldados: M. Roques, o carrasco, acabava de pessoalmente, verificar as boas condições da guilhotina: o gume da navalha caiu surdamente, no vazio.


“Atenção: sentido!” – à voz de comando, os calcanhares bateram. Embora se desejasse uma execução exemplar, tomava-se cuidado para que não houvesse grande afluxo de povo, e chegaram a pedir aos párocos que os sinos não soassem durante a noite. Eram os temores de revolta. Contudo, alguns curiosos chegavam às escondidas em pequenos grupos. Eles eram apenas uma centena.

Dois a dois apareceram os prisioneiros, mãos atadas às costas, acompanhados dos seus confessores. Eles se detiveram a dez passos do cadafalso, perto do pequeno grupo de oficiais. O procurador tirou de sua algibeira o seu relógio de prata que marcava 8 horas e vinte e cinco minutos. Dois dos condenados abaixaram obstinadamente os olhos para não verem a inexorável máquina mortífera. Mazière olhava-a, dominando-se com esforço. 

O velho Piarrouty fixava-a num misto de bravata e de curiosidade. Foi ele o primeiro do grupo a ser empurrado para a escada, seguido pelo padre Mounier, que segurava um crucifixo de cobre. O velho, cuja cólera se extinguira, resignado a terminar ali a sua vida miserável, beijou o metal frio da cruz e os ajudantes do carrasco arrastaram-no. Houve um ruído bem mais surdo do que o anterior, quando a guilhotina fora testada. A navalha, desta vez, não funcionara em vão.


Acompanhado pelo Padre Lavergne, Buisson subiu com dificuldade os degraus, precedendo de perto Mazière, que era assistido pelo abade Gouzot. Chambort, a quem o abade Vannier aconselhava calma, quis falar quando se encontrou no cadafalso: — “Enfim, somos gente de bem”, gritou. Mas os ajudantes empurraram-no violentamente sobre a prancha e tudo acabou...


A cortina acabava de cair sobre a tragédia de Hautefaye. Estes quatro homens consideravam-se pessoas de bem. Eles afirmaram-no com frequência e os seus advogados já os tinham apresentado como tal ao longo do processo. Como esses infelizes chegaram a esta situação dramática?


Três dias de feira clima propício para boatos e manipulações


Tudo começara numa atmosfera de feira, onde se bebe muito e as línguas se soltam para compensar as longas semanas de trabalho solitário nos campos.


As origens profundas do problema residiam num conflito antigo, de já algumas décadas, entre os pequenos nobres, proprietários rurais, que os campos ingratos do Nontronnais tornava hostis aos impostos e os nostálgicos da monarquia de Carlos X, seus rendeiros e colonos, para os quais Napoleão III era o último herdeiro da tradição igualitária da Revolução. Nesta ocasião, já quase nenhum era republicano, como acabava de demonstrar o último plebiscito de 1870. No campo, os republicanos eram considerados, sobretudo, como hábeis manipuladores decididos a fazer de tudo para derrubar o Império;  e entre eles, colocava-se, embora isto nos parece curioso hoje em dia, os nobres rurais; o plano deles consistia, assegurava-se, em favorecer a vinda de uma República, que logo demonstraria a sua incapacidade para governar, e que seria suplantada facilmente pelo rei, chamado pelos seus fiéis...


As primeiras e desastrosas notícias da guerra declarada a 2 de agosto, começaram a chegar, espalhadas por uma imprensa já pessimista. Conforme elas eram transmitidas de boca em boca, eram ampliadas pelo medo; elas encontrariam uma repercussão extraordinária nas festas populares de Hautefaye, que o calendário, fortuitamente, iria prolongar por três dias; porque a feira do dia 16 caía na terça-feira; a véspera, dia 15, era feriado, porque o 15 de Agosto era festa nacional do imperador, da imperatriz e do pequeno príncipe imperial. Desde sábado à tarde, portanto, uma intensa animação reinava na vila, onde se encontravam, excepcionalmente, para negócios, camponeses e ricos proprietários.


Guerra Franco Prussa
A decepção, a cólera da gente do povo diante dos sangrentos reveses de Napoleão, levava-os a observar os seus adversários dos castelos, com olhares agressivos. Uma palavra imprudente, ou pequeno gesto, era rapidamente interpretado como demonstração de alegria ante as derrotas imperiais. A isto, acrescenta-se, o álcool, o contágio coletivo, a fatalidade de uma palavra mal compreendida seria suficiente para desencadear uma explosão e a máquina infernal encontraria ali um eco.


No dia 16 de agosto a feira de Hautefaye atingiu o seu auge. Por volta das duas horas da tarde, fazia-se sentir um calor pesado, opressivo; a tempestade rondava. Jamais se vira tal influência na cidade. Sem dúvida os acontecimentos pressagiavam algo. Queria-se conhecer as novidades, encontrar os amigos, aqueles que tinham recebido ordem de partir para servir no exército, buscavam um pouco de segurança e, em vez disto, lhes eram anunciadas derrotas e mortes. Piarrouty, um velho miserável que ganhava o seu pão trabalhando como trapeiro, acabava de saber que o seu filho fora morto, numa carga de cavalaria, no dia 6 de agosto, bem longe no Leste...


Da feira subia um rumor confuso: mugidos de animais picados pelas varejeiras, toques de cornetas, gritos de charlatões, discussões de camponeses em dialeto, na rebuscada lingua d’oc, discutiam sobre o preço de um boi. Os bares regurgitavam, e o vinho da região, o legítimo Bergerac, corria largamente. Na praça e nas ruas, tinha-se cuidado para não se misturar com o povinho. Os ricos proprietários de terras, castelãos interessados em negócios, fiscalizavam a venda dos seus animais ou procuravam pessoas de boa companhia. Ao se encontrarem, cumprimentavam-se com sinais de uma polidez cuidadosa. Neste dia, mais do que em qualquer outro, a multidão observava sem complacência, os belos senhores dos castelos e fiscalizavam as suas intenções.


Soldados Prussianos
—Nós vencemos os prussianos; mais isto não impediu que nos recuássemos até a Moselle, explicava com voz bastante alta um homem que se considerava entendido em assuntos militares, um dos castelões, M. de Taillart. Ele falava a um dos seus conhecidos, um proprietário da região, M. Antony, sabendo que atrás dele, pessoas que não ignoravam as suas opiniões hostis ao segundo Império, acabavam de parar e prestavam atenção.


Um estranho personagem vestido de branco


Um rapaz, trajado com cuidado, chapéu branco, camisa branca, interrompeu M. de Taillart com veemência: — O senhor é um animal; os franceses não recuam. Se a isto eles foram obrigados, a culpa é sua, porque envia dinheiro para os prussianos...


Um círculo se formara, de rostos duros, hostis.  O castelão, atingido pela injúria e acusação pública, respondeu vivamente:


— Eu seria bem tolo de enviar dinheiro ao inimigo, quando devo partir para o combater. É uma pena que enquanto os prussianos invadem as nossas fronteiras, os franceses não se entendem entre si e que, em algumas cidades como Paris, grite-se: Viva a República!


Palavras sensatas, sem dúvida, mas, do som furioso desta voz, os desordeiros que se aproximavam não ouviram senão as últimas palavras, que lhes pareceram uma fanfarronada e uma provocação.


— Quem gritou: “Viva a República”? – perguntou um rapagão que acorreu rapidamente.


— Ninguém, respondeu M. de Taillart, estupefato do rumo que tomavam os acontecimentos, ao mesmo tempo que via formar-se ao seu redor um círculo enorme de pessoas inquietas, instigadas pelo homem de branco, cujos gestos tornaram-se frenéticos.


— Bem, então gritai: — Viva Napoleão III!

M. de Taillart, angustiado, mas muito lúcido, voltou-se para o seu companheiro Antony. Encontrou-o lívido. Antony murmurou-lhe ao ouvido:


— Salve-se logo ou lhe matam.


O castelão possuía um vivo espírito de decisão e foi isto que o salvou do pior.


— Viva Napoleão; gritou ele.


Depois, aproveitando-se do momento de incerteza que a sua exclamação produziu no povo, saltou o muro de pedra contra o qual o tinham acuado insensivelmente, e pôs-se a correr por um campo de urzes, para ganhar a proteção de um  bosque próximo.


— Segurai-o, segurai-o... Ele nos escapa, o bugre, gritava despeitado o homem de branco.


Dois ou três camponeses lançaram-se em perseguição do nobre, mas atrapalhados pelos seus tamancos ou sapatos grossos e 
ferrados, logo se detiveram, sem fôlego.


Efervescência insólita e o contágio


Castelo de Bretanges
Enquanto circulava na feira, nas ruas e bares a incrível nova de que um nobre tinha gritado: “Viva a República”! e que tinha escapado à vingança popular, que tal desafio merecia. Ora nesta hora, chegou em Hautefaye um jovem castelão, de porte quase delicado, chamado Alain de Moneys. Ele morava com a sua família no castelo de Bretanges, situado num país verdejante, mas pobre e montanhoso na comuna vizinha de Beaussac. Era um pessoa amável, quase humilde, que tinha tomado o lugar do seu pai, o conde, para dirigir os negócios das suas terras. Monarquista, como todos os proprietários de castelos, ele era descrito e não provocava ninguém. Também era patriota, já que tinha assinado, poucos dias antes, em Périgueux, o alistamento voluntário por todo o tempo da guerra e esperava que o chamassem para o corpo de cavalaria em formação em Limoges. Desde a sua chegada à vila de Hautefaye, Alain observou uma efervescência insólita. 


– O seu primo de Taillart acaba de amotinar a multidão ao gritar “Viva a república”!, explicou-lhe Bréthenoux, um outro castelão, seu conhecido.


– Ora, eu não vejo Camille há muito tempo, mas eu o conheço bem para estar certo de que ele não disse isto. Não posso acreditar!

Vivamente atingido, Bréthenoux replicou:


— Bem, segui-me até ao lugar de onde ele acaba de sair, aí encontrareis outras pessoas que o ouviram com os seus próprios ouvidos. Ele fugiu a correr pelo campo de urzes...


Os dois homens aproximaram-se do grupo de curiosos que tinha ficado no local da discussão.


— Aqueles que ouviram M. Taillart gritar: “Viva a República, abaixo Napoleão”, levantem a mão, inquiriu Bréthenoux, que tinha subido no muro para dominar a multidão.


Três mãos levantaram-se logo; outras hesitaram, mas foram arrastadas pelo contágio gregário e ergueram-se também. Foram umas vinte, que por causa de uma estúpida gloriola atestaram terem sido testemunhas de um facto incrível. Alain de Moneys, em quem reconheceram um nobre pelo seu aspecto e seu modo de vestir esmerado, foi logo cercado. A multidão, de um modo cruel mas sem dúvida inconsciente, afastou-o do muro por onde poderia saltar e fugir.


— Ah, queres defender o outro?


— Estás de acordo com ele.


— É o primo do que acaba de fugir?!...


Uma presa fácil e a fúria da multidão


Alain de Moneys
Uma presa acabara de escapar, mas uma outra se apresentava em seu lugar, por troca inesperada. O círculo cheio de ódio, vociferante, fechava-se ao redor do recém chegado. Bréthenoux, estupefato ante o que acontecia e que ele tão tolamente tinha começado, gesticulava em vão sobre o muro, tentando explicar, mas ninguém o ouvia.


Acreditando viver um pesadelo, Alain procurou em vão um rosto que não estivesse alterado pelo ódio. Ele queria gritar mas, mais de surpresa que de desespero, mas a sua voz afogava-se na garganta; dos seus lábios só saíam um murmúrio:


— Não! Eu sou soldado! Eu vou partir para a guerra...


Ninguém o ouvia. O atropelo crescia ainda mais. Aqueles que se encontravam fora do grupo e aos quais alguém dizia que se tratava de um nobre que estava publicamente desejando a queda do império e a vitória dos prussianos, procuravam abrir caminho com os cotovelos e ficavam surpresos de se encontrar face a face com um homenzinho de rosto jovem, pálido de medo...


Na multidão, os mais covardes se sentiram então com coragem. Um soco atingiu Alain nas costas, enquanto alguém o segurava pela orelha. Ele voltou-se e por resposta, gritou com voz estrangulada:

— Viva a França! Viva o Imperador!


Mas já não o escutavam; seu julgamento estava concluído; não se escutava também Bréthenoux, que, empoleirado no muro, perdia o fôlego gritando:


— Não o espanqueis, não o espanqueis, eu o conheço bem!


Os primeiros golpes foram dados. Maldosamente, um homem chamado Buisson, com um aguilhão de picar os bois, fincou-o atrás da orelha do jovem castelão; o sangue correu num longo filete e à sua vista o furor da multidão exacerbou-se. Dois homens cheios de ódio, os irmãos Camprot, pessoas muito robustas de 20 e 22 anos, começaram a bater-lhe com os seus pesados bastões de madeira. Um grito terrível, sem dúvida lançado pelo homem de branco, fez-se ouvir:


— É um prussiano, é preciso enforcá-lo! Morte ao prussiano!


— Não, diziam algumas vozes mais prudentes, levemo-lo ao administrador.


Contudo estas vozes foram rapidamente cobertas pelo clamor repetido inúmeras vezes: “É preciso enforcá-lo!”


A cerejeira e o ferreiro


Mas onde enforcá-lo? Alguns lembraram que havia na estrada de Ferninas uma enorme cerejeira, em frente ao jardim do presbitério. Alain foi empurrado, arrastado e conduzido pela multidão até à árvore. Mas, uma decepção esperava os condutores. Os seus galhos eram muito oblíquos, ou muito fracos. Os golpes redobraram sobre Alain. Não se sabe mais o que fazer. Os habitantes de Hautefaye, apavorados, entram todos nas suas casas, precipitadamente.


Nesta multidão sem cabeça, vai aparecer um líder. Ninguém o conhecia; mais tarde sabe-se-á somente que este homem alto, robusto e decidido, é ferreiro na aldeia de Fouvrière. Com uma presteza de tocador de tambor, ele passou por cada uma das pessoas do grupo a sua longa bengala que tinha uma ponta de chumbo, gritando: “Batei, é um prussiano. Acabai com ele!”


E face ao seu apelo, os golpes redobram. Alguns pensavam saber quem ele era: o auxiliar do administrador de Hautefaye, afirmou alguém à guisa de suposição. Chambort – porque este era o nome do ferreiro – ouviu e não desmente.


Aqueles que queriam salvar Alain de Moneys, gritaram: “O administrador!”. Bem poucas pessoas até então tinham pensado no primeiro magistrado da localidade. A sua casa, por um acaso feliz, era bem próxima da cerejeira. O administrador Mathieu foi, infelizmente, um poltrão. Advertido do que passava, impelido a agir, cingiu de má vontade a sua faixa tricolor e avançou para os desordeiros. Levantou os braços para tentar obter silêncio. Em vão. Ele permaneceu entre os desordeiros, sem reagir. Foi, entretanto, para a sua casa que os seus amigos encaminharam disfarçadamente de Moneys. Alain bateu na porta. Ela foi entreaberta um breve instante, mas a mulher do administrador, atemorizada pela desordem, fechou-a logo. Ela teria agido de outra forma se o seu marido houvesse mandado. Ora, Mathieu permanecia impávido e aborrecido...


Buisson e Mazière seguravam o infeliz castelão pelo colarinho: “É preciso matá-lo, é preciso fazê-lo sofrer”, gritavam. Os olhos de Chambort caíram então sobre umas enormes vigas, próprias para trabalhos de ferreiros; por experiência própria, ele sabia bem como as usar, tirando o máximo proveito...


Alain de Moneys, meio desfalecido, não resistiu um só momento. As suas roupas estavam rasgadas; do seu ferimento corria, sobre o seu rosto, sangue já endurecido. Entretanto, no meio destes homens furiosos, alguns procuravam salvá-lo, interpondo-se, recebendo mesmo alguns golpes em seu lugar, como Antony, Brèthenoux, Lamouroux, Pascal, Chaulet, Tamisier, Penazol, Mazerat. Mas eles agiam cada um por sua vez, isoladamente, e eram logo rudemente afastados. Um deles, o mais obstinado, Philippe Dubois, foi chamado à parte por um serrador, Beauvais de Roumaillac, que urrou: “É preciso queimá-lo e se tu o defendes, serás queimado também”!


Chambort continuava com o seu plano, quando lhe vieram comunicar uma incrível novidade: “O sacerdote acabava de sair do presbitério com uma pistola na mão”


A pistola do Pároco


O Padre de Saint Pasteur, pároco de Hautefaye, avisado do que ocorria, resolveu tentar alguma coisa para libertar Alain de Moneys, saindo do presbitério, que era perto. Tomou uma velha pistola descarregada – ele não possuía munição – só para impressionar a multidão. Assim que abriu a porta do jardim, compreendeu quão inútil era a sua tentativa. Chambort, com alguns mais exaltados, abandonando por um instante a sua vítima, colocaram-se diante do padre, apostrofando-o com insolência:


— Então, os canalhas procuram defender uns aos outros... Padres, bebedores do suor do pobre povo...


Já algumas bordoadas caíam sobre os ombros do sacerdote. Uma pessoa aproximou-se por detrás e deu-lhe um grande golpe na cabeça com um guarda chuva de feira. Compreendendo que não poderia abrir caminho entre a multidão, o Pároco, porque era um homem corpulento, empurrou algumas pessoas e entrou no presbitério. Mas não conseguiu fechar a porta atrás de si; os desordeiros conseguiram entrar na casa.


— Cura, vai-nos oferecer bebida, levantar o teu copo conosco e brindar à saúde do imperador...


Aflita, a velha senhora que servia o sacerdote, a um sinal do sacerdote, trouxe, tremendo, copos e garrafas... O vinho de safra antiga foi consumido em quantidade...


— Viva o imperador! Viva a imperatriz! Gritou o padre elevando o seu copo.


Entretanto, as pessoas interessadas em salvar Alain aproveitaram o repouso que esta diversão lhes proporcionava. Arrastaram Alain até um estábulo de porcos, junto à casa do administrador. Antony explicava: Nós vamos fechá-lo aqui, enquanto esperamos para o transferir a Nontron ou Mareuil.


Um breve momento de repouso


Mas na multidão, muitos não eram tolos. O velho trapeiro Piarrouty, quis usar ainda uma arma improvisada, mas terrível, o grande peso de metal com que ele pesava os seus fardos de trapos. Com ele deu tal pancada no crânio da sua vítima que, segundo testemunhas, entrou na cabeça de Alain. Um velho, Brouillet, conselheiro municipal da comuna de Feuillade, calçado com pesados sapatos ferrados, com um forte pontapé arrancou uma mecha de cabelos do castelão. Finalmente, a porta do estábulo fechou-se atrás de Alain de Moneys, separando-o, por algum tempo, dos seus torturadores.


As pessoas que para lá o tinham conduzido, procuravam confortá-lo. Dubois tinha instalado o infeliz sobre a palha e dava-lhe alguns figos que tinha guardado no bolso ao sair de casa para que comesse. Cheio de reconhecimento, Alain beijava as mãos destas pessoas que o auxiliavam e falava-lhes da sua mãe.


– Para toda essa gente, para quem nada fiz, gostaria de comprar uma barrica de vinho e oferecer-lhes, murmurava.


Duas horas de martírio


Mas eles apuraram os ouvidos. Não havia dúvida; a arruaça recomeçava:


— Onde está o prussiano? Gritou alguém com ódio.


— Meus amigos, escutai-me; eu sou o administrador de Hautefaye. Se houve alguma coisa, far-se-á justiça...


Esta voz suave, sem energia e calor, era facilmente afogada pela vociferação dos líderes.


– Abri a porta do estábulo, se não quereis que a arrombemos, gritou Chambort.


Bouteaudou, moleiro de Connezac, procurou corajosamente impedir. Mas Chambort mandou buscar uma escada pequena, subiu ao telhado do estábulo e levantou as telhas para descer. Eles estão lá, gritou num tom de vitória. Mudemos de roupa, tomai minha camisa, quem sabe vós podereis fugir, propôs Dubois a Alain. Mas era muito tarde... O infeliz foi arrancado do estábulo. O seu calvário ia durar ainda duas longas horas. Procuraram abrir o albergue Mondon. O estalajadeiro, que lá se encontrava, tremia: “Se eu cometer a loucura de deixá-los entrar, vão quebrar tudo aqui”.


Um comerciante de cavalos, de coração generoso, não se conteve mais:


— Se eu encontrasse aqui 50 homens decididos, faríamos parar este horror, gritou.


Ele chamava-se Laroussie. Mas as suas palavras não encontraram eco. Golpeado, carregado e arrastado pela multidão até à feira, Alain de Moneys murmurava de vez em quando: “Viva a França, Viva o imperador”!


Numa última tentativa dos seus defensores, uma proposta singular saiu da boca de Dubois: “Fuzilemo-lo! Ide apanhar os vossos fuzis”.


Houve um momento de indecisão. E Alain perdeu os sentidos. Pensaram que tivesse morrido e a multidão rodeou-o. Depois, ao reabrir os olhos, os furiosos diziam que ele queria enganá-los e renasceu sua cólera.


A fogueira


Então aconteceu algo desconcertante. Reunindo as suas últimas forças, compreendendo que não podia esperar nenhuma piedade dos seus perseguidores, sangrando, ofegante, Alain levantou-se e correu para um refúgio, junto à charrete de um comerciante de lã; arrancando uma vara da charrete, enfrentou a multidão. Mas após uns instantes, por estar muito fraco, escondeu-se sob o meio de locomoção, para se proteger dos golpes. Dali foi rapidamente retirado pelos pés e arrastado. A sua cabeça batia nas pedras do caminho.


Ouviu-se então um grito horrível:


— Vamos queimá-lo! Os prussianos nos queimariam também se pudessem!


No lugar de uma grande poça seca pelo calor do verão, improvisaram uma fogueira, com alguns galhos. O corpo semi nú de Alain de Moneys foi jogado de lado, coberto com a madeira e depois com os feixes de lenha. Ele teve um sobressalto, quando compreendeu que ia morrer de modo tão horrível.  Quando o arranjo estava bem alto, Chambort nele subiu e, como se fosse sacerdote de alguma religião sangrenta, gritou:


— Viva Napoleão! Viva o Imperador!


E descendo disse:


— Cabe às crianças e aos mais jovens acender o fogo. Dois meninos aproximaram-se, mas eles não tinham fósforos. Chambort vasculhou os seus bolsos. Ele também não os tinha. Ele deu então uma moeda às crianças para que os fossem buscar na mercearia. A multidão aproximava-se da fogueira, curiosa. Aqueles que procuravam ver Alain de Moneys e que o distinguiam entre os galhos, recuavam espavoridos: estava bem vivo e com a respiração ofegante.


O pequeno Limay riscou um fósforo na sua calça de veludo e entregou-o ao pequeno Lajou...


— Apagai-o, crianças, ordenou Dubois.


— Acendei, crianças!, comanda Chambort, estendendo um molho de palha. Logo a fogueira cresceu, atingindo com as suas chamas as grandes árvores vizinhas.


— Viva o Imperador! Viva Napoleão III!, grita a multidão.

De repente, um cheiro horrível espalhou-se e um estalido fez-se ouvir. Um golpe de vento espalhou a fumaça e mostrou o corpo de Alain de Moneys cuja gordura começava a queimar. Os espectadores, mesmo os mais sanguinários, sentiram a garganta seca. Alguns querem voltar aos bares, mas na aldeia a exaltação acabou. Os habitantes esconderam-se nas suas casas e as janelas foram fechadas.


Na praça, ao voltar, Chambort se gabou com alguns comparsas:


— Acabamos de queimar um prussiano que gritava “Viva a república! Abaixo o imperador!”. Nós fizemo-lo para salvar a França. Napoleão devia dar-nos uma grande recompensa...


Um exaltado, não satisfeito ainda, propunha uma ação ainda maior: “Hoje, nós somos 80 é preciso ir queimar o castelo de Bretanges...”

Mas como a aldeia, uma hora antes regorgitando de gente, se tinha esvaziado, uma vaga inquietação dominou o último desordeiro, que se separou dos outros com uma última gabolice:


— Hoje nós queimamos um famoso porco em Hautefaye. E poderemos fazer o mesmo a todos aqueles que nos contrariarem.


A normalidade e o processo criminal


Alguns mercadores que tinham, rapidamente, protegido os seus pacotes nas carruagens, ao passarem pela praça, trouxeram a notícia de que os guardas de Nontron chegavam. A hora das contas ia soar.

O assassínio de Hautefaye encontrou grande repercussão na opinião pública, por causa da sua particular crueldade. Disso noticiou o Journal Officiel, que escreveu a 23 de Agosto: “O crime cometido e que excitou um legítimo horror, está a ser objeto de uma investigação, conduzida com vigor e rapidez...”


O administrador de Hautefaye foi destituído no dia 24 de Agosto e o vice- prefeito de Nontron arrancou-lhe publicamente a faixa. O prefeito propôs a supressão da comuna, cujo território seria repartido entre as comunas vizinhas... Mas a atenção geral foi solicitada para outras notícias, bem mais graves que o caso de Hautefaye. No momento mesmo em que queimavam vivo Alain de Moneys, dava-se a batalha de Rezonville, a mais sangrenta do século. No dia 1 de setembro deu-se a capitulação do imperador à frente de 120 mil homens em Sedans... a 4 de setembro, a República, cujo nome tinha provocado a revolta de Hautefaye, foi proclamada em Paris!


A investigação conduzida com rigor, desvendou alguns detalhes. Um primeiro inquérito levantou a suspeita de que perto de mil pessoas poderiam ser incluídas no caso, tendo elas incitado a bater, tendo batido ou deixado bater, ou ainda tendo ajudado os criminosos. Na prefeitura de Périgueux, a aflição foi geral, ante a idéia de ver chegar tal multidão na vetusta e exígua prisão da cidade.


O processo criminal não nos dá pistas das intervenções que fizeram com que desaparecessem nomes da lista infamante. Mas é certo que amizades políticas ou particulares importantes estão por detrás dela. Após uma difícil sessão de análise na vice-prefeitura de Nontron, reduziu-se de 80 a 21 o número de culpados. Uma primeira sessão de julgamento foi prevista, a título extraordinário, para o dia 26 de setembro. Mas o sítio de Paris pelos alemães, cortando as ligações com o ministério do Interior, obrigou a que fosse transferida para outubro. Ela não pôde se realizar nesta ocasião e uma decisão administrativa quis rever o processo na justiça da Gironda.  Os magistrados de Bordeaux fizeram de tudo para não terem diante de si um tal dossier.  Finalmente, foi decidido que o processo começaria a 13 de dezembro de 1870, em Périgueux.


Um processo entre dois regimes


A despeito do horror do crime que se ia julgar, em razão das circunstâncias políticas, o processo, sob certos aspectos, pareceu ridículo... A ocasião era muito boa para se fazer a análise de um regime detestado há vinte anos pelos republicanos, muitos deles advogados locais. Quanto à magistratura, ela permanecia no momento, mal colocada entre o Império, ao qual os juízes deviam o seu cargo, e a República, ainda na infância, de futuro incerto...

A presidência dos debates foi entregue ao conselheiro Bronchon, assistido pelos senhores Boyes e Boissarie. O ministério público era sustentado por M. Jorand. Os esforços destes senhores, que pareciam, no dizer de uma testemunha, “pisar sobre ovos”, eram para evitar qualquer “deslize” nas intervenções. Ofendia-se o imperador, mas na medida exata. Fez-se um processo à base de bons sentimentos, ao pé do crucifixo. “Contemplai os vossos antepassados”, “buscai merecer a piedade de Deus,” dizia o presidente com voz severa. E os acusados, conquistados por tanta bondade, tranquilizados por este combate de floretes sem ponta, choravam ou batiam no peito:


— Nós estávamos loucos ou bêbados... Alain de Moneys, certamente, é que era um bravo cavalheiro. Eles reconheceram todas as acusações que lhes eram imputadas e as testemunhas foram muito parcas.  O fato do grupo ser constituído de 21 pessoas, levava-os a pensar: “Não podem nos guilhotinar a todos...”


O julgamento durou 3 dias. A opinião pública estava calma, mesmo entre os republicanos. Viu-se que os acusados eram homens comuns: Chambort tinha uma  cabeça enérgica e rude; Mazière com o seu queixo pontudo, tinha aspecto de texugo, e procurava passar desapercebido; o mais perigoso parecia Piarrouty, o velho trapeiro; mas o seu filho tinha acabado de morrer em combate, o que merecia compaixão. A 20 de dezembro declarou-se o veredicto: 4 condenações à morte: Chambort, Buisson (o homem do aguilhão sangrento), Mazière e Piarrouty, cujo nome verdadeiro era Leonard; uma condenação perpétua a trabalhos forçados, onze a 8 e 6 anos, uma a cinco anos e 5 a um ano de prisão. Quanto aos 2 jovens de menos de 16 anos que tinham acendido a fogueira, um foi enviado a uma casa de correção e o outro entregue à sua família...


Ouvindo a sentença, os condenados à morte, mesmo o robusto Chambort, vacilaram; somente Piarrouty lançou contra o presidente uma avalanche de injúrias e ameaças.


O doutor Guilbert, um bom médico da cidade de Périgueux, conhecido pelas suas opiniões liberais, foi nomeado, após o dia 4 de setembro, prefeito da Dordogne, pelo governo da República. Ele incumbiu com paciência a sua ingrata tarefa. Um dos problemas que mais o incomodavam eram os autos do processo de Hautefaye, cujos condenados esperavam, presos, um perdão duvidoso. A opinião pública tornara-se favorável aos acusados. As atrocidades da guerra contribuíram para modificar o estado de espírito das pessoas de bem. A morte de Alain teria sido mais horrível do que a de dezenas de mulheres e crianças queimadas com os francos atiradores nas casas de Châteaudun? A França já não lamentava tantos danos e sofrimentos, para serem  acrescentados ainda mais os insignificantes condenados à morte de Hautefaye? O próprio prefeito Guilbert tinha passado, insensivelmente, da indignação ante a atrocidade do assassinato, para uma espécie de mansidão frente à inutilidade do castigo que se preparava. Quando lhe chegou a ordem decisiva, ele desdobrou-se na esperança das últimas tentativas.  Fora prescrito que a guilhotina seria erguida nos lugares do assassinato, em Hautefaye, e que tudo acabaria na segunda-feira, 6 de fevereiro, ao amanhecer. M. Guilbert enviou, no sábado, um despacho, seguido de um telegrama desesperado, no qual, habilmente, ele invocava um argumento eleitoral: “Parece-me urgente suspender as 4 execuções de Hautefaye.  Elas produziriam um efeito deplorável. Se não se pode suspender, que se conceda o perdão. Estes homens manifestam os melhores sentimentos, desde que foram condenados. Resposta imediata”.


A condenação à morte


A resposta com efeito, veio rapidamente: “O Ministro da Justiça partiu ontem cedo para Paris. Os vossos dois despachos foram encaminhados, na ausência dele, M. Gambetta, o Primeiro Ministro, respondeu que o Conselho tinha deliberado e que a execução deve ter lugar, sem nenhuma graça e adiamento”.


O prefeito Guilbert não pestanejou; apresentou o papel amarelo ao seu chefe de gabinete, dizendo-lhe somente, com voz surda:

— Cuide para que tudo se faça segundo as ordens; mas recomende que isto acabe logo; os pobres já sofreram muito durante a viagem!

Habitualmente, no domingo, à tarde, tudo era calmo na prisão. Mas os condenados à morte, nas suas celas, correntes nos pés, aguçaram os ouvidos distinguindo ruídos de passos e ranger de fechaduras. 

Os 4 infelizes compreenderam logo que um grupo de oficiais encaminhava-se para o calabouço. Eles agitaram-se ante uma ideia: “É a graça certamente, é a graça...”


“Meu filho, chegou a hora...” 


Na penumbra, quando a porta da cela se abriu, Chambort reconheceu um padre, pela sua batina e breviário.


— Meu filho, sê corajoso. É a sua última hora. Ela soará para você amanhã, ao amanhecer. Esteja seguro de que a justiça do Céu será mais misericordiosa do que a dos homens...


O procurador lia atentamente a rejeição do recurso de perdão. Um urro de animal ferido interrompeu-o... Toda gente dizia que deviamos ser perdoados. Assassinos! Tomando uma pesada moringa de barro, o condenado lançou-a sobre os visitantes, que fecharam a porta bruscamente. Chambort ficou um momento a chorar, mordendo o seu colchão de palha.


Uma hora mais tarde, dois guardas apareceram com um cacete nas mãos.


— Chambort, é preciso que lhe coloquemos a camisa de força; até a execução, é a lei; deixe-nos fazer...


Docilmente o condenado estendeu os braços, depois, rebelando-se, cruzou-os sobre o peito:


— Eu deixarei, se me disserem o que foi feito aos outros, foram perdoados?


— Não, fareis a viagem juntos...


No dia seguinte, os outros condenados, foram conduzidos à capela; tinham lhes prometido uma surpresa. Eles, que só pensavam no perdão, esperavam ainda. A surpresa era a presença do bispo, Dom Dabert, que viera pessoalmente celebrar-lhes uma última Missa. Eles confessaram-se... comungaram. E acabaram de perder toda a esperança neste mundo.


Foram empurrados depois para a praça, onde volteavam os cavalos dos guardas ao redor de um veículo verde, alugado em Francheville. Os sacerdotes subiram na carroça, acompanhados por um homenzinho cuidadosamente vestido de cinzento.


— Nós pararemos em Brantôme, por volta da meia noite, para trocar os cavalos, disse em tom paternal. Era M. Roques, o carrasco...


Duas personagens enigmáticas


Na grande feira de Saint Memoire, uma canção, ao som da música “Fualdes”, em língua d’oc e em francês, narrava a tragédia de Hautefaye, com vinte e duas quadras. Centenas de impressos, apresentando “a cabeça dos assassinos e da sua infeliz vítima, com o relato do terrível crime”, foram vendidos. No dia seguinte ao das execuções, decorreram as eleições de deputados a Assembléia Nacional. A lista republicana recebeu 28.890 votos contra 80.162; no cantão onde se encontrava Hautefaye, os republicanos foram arrasados.


Em toda a região, a lembrança deste acontecimento sangrento permanece bem viva, embora todas as testemunhas já tenham desaparecido há muito. Mas ainda se conta, nas famílias, o relato da passagem da guilhotina e do carrasco, em Mareuil especialmente, onde, no albergue, ninguém quis servi-lo. Foi uma jovem empregada que se encarregou disso e que recebeu, em recompensa, uma moeda de Luís de ouro, preciosamente conservada...


Ao encerrar este processo, existem duas silhuetas que não se podem: a de um homem, elegantemente vestido de branco, que instigava a multidão e a de um tipo furioso, vestido de negro; “ele era muito estranho, dir-se-ia que era uma mulher avantajada, vestida de homem”, contou uma testemunha no interrogatório.


Deles nunca se falou no processo. Provocadores? Encarnações de Fatalidade? Sobre este assunto a acusação e a defesa uniram-se no silêncio...


(cfr. Jean-Louis Galet – “Historia” – agosto, 1970 – Nº 285)

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