Quem me dera ter agora neste auditório a todo o mundo! Quem me dera que me ouvira agora a Espanha, que me ouvira a França, que me ouvira a mesma Roma! Príncipes, reis, imperadores, monarcas do mundo: vedes a ruina dos vossos reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo?
Ou o vedes ou não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos...
Príncipes, eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó prelados, que estais em seu lugar: vede os destroços da fé, o descaimento da religião, vedes o desprezo das leis divinas, vedes a irreverência dos lugares sagrados, vedes o abuso dos costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade?
Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos...
Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar e da Terra; vedes as obrigações que se descarregam sobre o vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre as vossas consciências, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes a desatenção do governo, vede as injustiças, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes os respeitos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e os gemidos de todos?
Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos...
Pais de família que tendes casa, mulher, filhos, criados: vedes o desconcerto e descaminho de vossas famílias, vedes a vaidade da mulher, vedes o pouco recolhimento das filhas, vedes a liberdade e más companhias dos filhos, vedes a soltura e descomedimento dos criados, vedes como vivem, vedes o que fazem e o que se atrevem a fazer, fiados muitas vezes na vossa dissimulação, no vosso consentimento e na sombra do vosso poder?
Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos...
Homem cristão, de qualquer estado e de qualquer condição que sejas: vês a fé e o carácter que recebeste no baptismo, vês a obrigação da lei que professas, vês o estado em que vives há tantos anos, vês os encargos da tua consciência, vês as restituições que deves, vês a ocasião de que te não apartas, vêrs o perigo da tua alma e da tua salvação, vès que estás actualmente em pecado mortal, vês que se te toma a morte nesse estado te condenas sem remédio, vês que se te condenas hás de arder no inferno enquanto Deus for Deus, e que hás de carecer do mesmo Deus por toda a eternidade?
Ou vemos tudo isso, cristãos, ou não o vemos. Se o não vemos, como somos tão cegos? E se o vemos, como o não remediamos?!
(Padre António Vieira, Sermão da Quaresma sobre o tema da Cura do cego de nascença).
Estas palavras pronunciadas pelo grande pregador na Igreja da Misericórdia de Lisboa no ano de 1669, mostram-nos que os desvarios e desgovernos são de todos os tempos. Para nos remirmos de tão funesta desordem, embebamos o nosso espírito na oração, na boa leitura ou na meditação e certamente, as escamas cairão dos nossos olhos!
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