A devoção deve ser exercida de maneira diferente pelo
fidalgo e pelo operário, pelo criado e pelo príncipe, pela viúva, a solteira ou
a mulher casada; e não somente isto: é necessário acomodar o exercício da
devoção às forças, aos trabalhos e aos deveres de cada pessoa em particular.
Pergunto-vos, Filoteu, se estaria certo que um bispo
quisesse viver na solidão como os Cartuxos; que os casados não quisessem
amealhar mais que os Capuchinhos; que o operário passasse o dia na Igreja como
o religioso; e que o religioso estivesse sempre sujeito a toda a espécie de
encontros para serviço do próximo como o bispo. Não seria ridícula, desordenada
e inadmissível tal devoção?
Contudo este erro acontece frequentemente. E no entanto,
Filoteu, a devoção não prejudica ninguém quando é verdadeira, antes tudo
aperfeiçoa e consuma; e quando se torna contrária à legítima ocupação de
alguém, é sem dúvida falsa.
A abelha extrai o mel das flores sem lhes fazer mal,
deixando-as intactas e frescas como as encontrou; todavia, a verdadeira devoção
age melhor ainda, porque não somente não prejudica qualquer espécie de vocação
ou de tarefa, como ainda as engrandece e embeleza.
Todas as variedades de jóias lançadas no mel se tornam mais
brilhantes, cada qual segundo a sua cor; assim também cada um se torna mais
agradável e perfeito na sua vocação se esta for conjugada com a devoção: a
atenção à família torna-se mais paciente, o amor entre marido e mulher mais
sincero, mais fiel ao serviço que se presta ao príncipe, e mais suave e
agradável o desempenho de todas as ocupações.
É um erro, se não mesmo uma heresia, quere banir a vida
devota do regimento dos soldados, da oficina dos operários, da corte dos
príncipes, do lar das pessoas casadas. É certo, Filoteu, que a devoção
puramente contemplativa, monástica e religiosa não pode exercer-se em tais
ocupações; mas para além destas três espécies de devoção, existem muitas outras
próprias para o aperfeiçoamento daqueles que vivem nos estados seculares.
Onde quer que estejamos, podemos e devemos aspirar à vida
perfeita.
[“Introdução à Vida Devota” de São Francisco de Sales (Parte
I, cap. 3)]
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